O sentimento do mistério entre os alienados


Muitos alienados pertencentes às categorias mais disparatadas acreditam viver em pleno mistério, em uma perpétua e universal fantasmagoria. As ilusões, as alucinações, mesclando-se à realidade, causam-lhes a impressão, ― por pouco que reste de alguma memória e de alguma capacidade de comparação ou de controle ―, de que pessoas, animais, objetos, acontecimentos, palavras são enigmas complexos, com os quais não se pode brincar levianamente, ciladas, mistificações, símbolos. Qualquer rosto é uma máscara, ocultando um personagem secreto, e os dados mais fúteis devem ser decifrados. Por pouco que haja alguma consciência do desarranjo de suas faculdades e da mudança que lhe sobrevém, a própria personalidade do doente se torna um mistério para ele, centro desse universo de mistérios. Ao lado dos delirantes que acabaram e que estabilizaram seu sistema, ― os loucos que sabem, que encontraram ―, há aqueles que estão no período de atividade, em via de construírem seu delírio: os loucos que buscam, que experimentam hipóteses. O sentimento mórbido do mistério é a fonte inesgotável de suas interpretações delirantes,  e é para se libertarem da inquietude do inexplicável que eles sistematizam, segundo duas possibilidades, essas interpretações em um conjunto mais ou menos coerente.
Nós temos todos, nós os normais, o sentimento do mistério, e, conforme nossa cultura, o tormento do desconhecido. Mas temos também, e primeiramente, o discernimento do real, a percepção ou a adivinhação, se não adequada, ao menos praticamente suficiente das coisas naturais e das coisas humanas. Nossa noção das leis físicas nos orienta entre os fenômenos, nos sugere expectativas que não são decepcionantes; nossa noção das leis psicológicas nos permite a sociabilidade; sabemos que os homens não são sempre enganadores, comediantes, que a simplicidade, a veracidade, o erro ingênuo existem. Nós não complicamos muito a vida. Restam os grandes problemas, os arcanos da ciência e da filosofia: mas, sobre nosso sentimento normal do desconhecido, construímos apenas metafísicas, sistemas teóricos, que nos deixam as mãos livres para a ciência positiva e para a vida positiva.

D’Allones, G. R. (1906). Le sentiment du mystère chez les aliénés, Journal de psychologie normale et pathologique, Paris: Alcan, p. 1-2.

Nota: O Journal de Psychologie foi uma muito respeitável publicação. Nesse volume, que data do início do século XX, encontrei por acaso, enquanto procurava por outras coisas, esse artigo que trata de um sentimento tão inquietante: o sentimento do mistério, só que abordado em como ele acontece, segundo o autor, entre os alienados. Achei tão instigante que não resisti: traduzi os dois primeiros parágrafos e trouxe para cá, diretamente para consumo dos meus Mestres do Imaginário. A propósito (e cá entre nós), aquela parte do "nós, os normais" é ótima...  Quase tão boa quanto aquela dos "loucos que sabem" e "dos loucos que encontram"...


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