AS CARTAS NÃO MENTEM JAMAIS

Quem nunca, hein? Brincar com cartomancia pode ser muito divertido. Inesquecíveis são as lembranças que tenho de minha mãe mexendo naquelas lindas figuras coloridas. Ainda criança, ela me ensinou a ler as cartas. Na verdade, brincava disso: dizia sempre que era muito fácil descobrir todos os segredos das amigas ao colocar as cartas para elas.

Ah, preciso dizer que minha mãe foi uma mulher marcante. Elegante e vaidosa à primeira vista, ela sabia ser muito sutil e refinada. Soube provocar minha curiosidade com aquela história de descobrir segredos. Como assim? Os segredos estão nas cartas? Nas combinações? Ela sorria e sugeria que eu precisava estudar mais as tais combinações na tiragem. Mas fato é que ela acertava sempre, e as amigas, muitas vezes, vinham visitá-la apenas para, com algum jeito, pedirem para ler as cartas. Às vezes minha mãe cedia e, invariavelmente, as amigas iam embora muito impressionadas, não menos que eu, sempre à espera de que ela me revelasse o seu segredo.

Com o tempo, aqueles códigos passaram a fazer algum sentido, e, aos poucos, de certo modo, as cartas começaram a falar. Descobri também que havia outros baralhos diferentes do baralho cigano de Madame Lenormand, que existiu de fato. Era esse que minha mãe usava, o mais comum e conhecido de todos. Ela nunca se interessou pelo famoso Tarô, baralho divinatório, que serve também para alicerçar concepções esotéricas do Mundo e da Vida.  Posso dizer que até aprofundei um pouco esses saberes e que, amadora como minha mãe, até que lia, como ainda leio cartas razoavelmente bem. Contudo, minhas habilidades estavam bem longe das tiradas geniais de minha mãe.

O tempo foi passando e posso dizer que cresci presenciando esses grandes momentos. Encontros acolhedores das amigas, com café, bolo e muita conversa. Depois minha mãe entrava no quarto, abria a gaveta onde guardava “as cartas” e o clima de expectativa era contagiante, seja por conta da intimidade e da confiança, seja pela sedução de se saber algo sobre o futuro. Esperança, sempre a esperança.

Como se tratava de uma prática bem amadora, não havia nenhum tipo de cerimônia. Apenas certa seriedade no ambiente. E silêncio. Nunca se lê as cartas com TV, rádio ou som ligados. A mesa da cozinha ou da sala poderia servir de base, porque era preciso estender o jogo completo, no caso, as 36 cartas em quatro fileiras de oito mais quatro cartas colocadas bem no centro da quinta fileira. As cartas eram primeiro bem baralhadas. Depois a consulente dava um corte, dividindo o baralho em dois montes que eram novamente unidos para logo depois serem separados em cinco montes pequenos.

Minha mãe era muito habilidosa. Fazia certo suspense antes de “virar” cada um dos 5 cortes, a partir dos quais ela improvisava, de maneira brilhante, uma espécie de roteiro da leitura. Seus olhos verdes brilhavam quando ela ia, aos poucos, revelando as primeiras cinco mensagens que eram como que o eixo da jogada. Algo mais ou menos assim:

— Então é o Sol, que te traz tudo de bom, ilumina, protege, revela. Temos agora o Coração, carta das emoções, do amor, dos sentimentos de quem ama e é amado. A terceira carta é dos Caminhos, que representam a vida que segue, os acontecimentos que se anunciam. Vejamos a próxima carta: eis o Mensageiro, que vem a cavalo, que traz novidades.  Agora a quinta: olha a Carta! Tu vais receber notícias muito em breve. Veremos. Vamos estender o jogo.

Era mais ou menos assim que ela fazia a abertura. Sempre improvisando, sem sair do roteiro pré-fixado, que é o significado genérico e tradicional de cada carta. Minha mãe também criou um jogo que ela chamava de “A Cruz de Santo Antônio”. No meio: o que te cobre. Em cima: o presente. À esquerda: o passado. À direita: o futuro. Abaixo do centro, uma sobre a outra: o que tu esperas, o que tu não esperas, o que está em segredo e o que a chave confirma. Em um jogo rápido ela ia descrevendo:

— Ah, te cobre a Cruz, porque estás muito triste. Teu presente tem o Urso, cuidado com gente falsa que te cerca. Teu passado tem o Coração, porque é o amor que partiu, mas no futuro saíram as Alianças. Hum, ele pode voltar. O que esperas: a carta dos Peixes, porque queres dinheiro. O que não esperas: o Caixão. Ainda vais enfrentar dificuldades. Nem tudo foi resolvido. O que está em segredo: saiu a Cobra. Não é a melhor hora de tomar decisões importantes. O que a chave confirma: o Homem. Pode esperar. Ele só não voltou porque precisas organizar tua vida: resolve teus problemas de forma discreta, te afasta de gente maldosa, procura te cuidar, aliviar teu coração dessa Cruz que te cobre. Gente triste atrai mais tristezas. E nunca, nunca saia de casa sem batom e sem uma gotinha mínima de perfume nos pulsos e atrás das orelhas. Eu disse mínima! E sorria. Gente carrancuda é sempre feia.

Não se pode duvidar da riqueza de sentidos que um simples baralho de sorte pode conter. Sol era sempre bom. A Cobra era traição. A Estrela era sucesso. Os Lírios, pureza, mas quando saíam embaixo de alguém, indicavam falta de caráter. Torre com Nuvens era morte certa. Coração era amor. Alianças, união e até casamento. Os Livros eram segredos. O navio, viagem. Tudo era mágico e muito enriquecedor, porque essas práticas acabavam por criar um clima misterioso e — ao menos para mim — divertido. As coisas ruins apareciam, sim, mas minha mãe sempre as anunciava como algo que fazia parte de um todo maior que, mesmo que não pudesse ser superado, acabaria por trazer coisas boas mais tarde.

Aos poucos, o hábito de fazer e receber visitas foi praticamente abandonado. Era mais fácil telefonar. O acúmulo de décadas também implicou na partida de muita gente amiga. O velho baralho cigano chegou a se perder muitas vezes pelo desuso, mas sempre era encontrado em alguma gaveta, enfiado entre toalhas de mesa e panos de prato. Por vezes, alguém do passado lembrava das cartas e a cena se repetia, sempre mágica e impressionante.

Mas o tempo passou. A vida mudou. A gente esqueceu das cartas. Um dia, encontrando o velho baralho meio gasto, mostrei-o a minha mãe e retomei o assunto. Perguntei de onde ela tirava tantas revelações no tempo em que lia cartas para as amigas. Muitas vezes eu assistia as tiragens, via o jogo e entendia as combinações, mas o que minha mãe dizia nem sempre batia com o tema das cartas abertas. Questionei. Ela então falou, rindo bastante por sinal.

— Filha, é simples. As cartas são as cartas. Elas têm um significado particular quando sozinhas e outro quando combinadas, mas isso é o de menos. Importante mesmo não é o que as cartas dizem. Ler as cartas qualquer um lê. Se gostar, vai aprender mais, mas não é isso que importa. O que importa é ler a pessoa. A maioria é mulher e mulher é sempre a mesma coisa: querem saber de homem ou de dinheiro. Às vezes é mais sério: doença, saúde. Isso não muda. E olhando bem, tudo está na nossa frente. Mulheres frustradas por causa de homem são todas iguais. Problemas financeiros e doenças? Basta olhar para saber. Falar disso olhando para as cartas é fácil.  Todos querem poder sonhar com dias melhores e esperar por coisas alegres que façam a diferença. Quem tem que acreditar nas cartas é quem te consulta. Tu tens que acreditar é em ti. E no que podes ler não nas cartas, mas nas pessoas.

Minha mãe era fruto de um tempo em que mulheres competiam. Ela podia ser muito crítica na intimidade:

— Então. A fulana. Lembra? — perguntou.

— Sim, — respondi, porque lembrava dessa colega de trabalho de minha mãe.

— Ela não era feia. Era descuidada. Só comia. Andava de chinelos até na rua. Quando colocava um salto, se queixava de dor nos pés. Não gostava de roupas elegantes, porque achava difíceis de usar. Difícil é andar desarrumada! O marido? Sempre de terno e gravata, bom carro, simpático… Que achas? A carta do Ramalhete indicou outra mulher, a Chave confirmou, as Nuvens escuras ao lado das Alianças. Claro que o desquite ia acontecer! Filha, há coisas que nunca vão mudar. Quanto mais algo te entusiasma hoje, mais certo que te decepcionará amanhã. Melhor não esperar muito de nada nem de ninguém. Por mais que pareça banal, um lugar comum, a vida não passa muito disso.

E fomos assim, eu e minha mãe, passando a limpo os velhos tempos. Lembrando dos vivos, dos mortos e dos mortos-vivos também. Com o passar dos anos, nos tornamos mais próximas. Eventualmente voltávamos às cartas, a pedido de uma ou outra pessoa que, invariavelmente, saia mais leve da “consulta”.

Minha mãe era cética, assim como eu. Ela jamais levou as cartas a sério. A diferença, porém, é que ela nunca deixava que esse ceticismo transparecesse. A imagem que passava era a de uma mulher alegre, faceira, coquete, superficial a ponto de ninguém desconfiar de que conhecia profundamente a alma humana. As aparências enganam. Na verdade, ela já conhecia os segredos que as cartas lhe contavam. Sim, porque, afinal, as cartas não mentem jamais.

                                                                          Por Maristela Bleggi Tomasini

REVISTA VIDA BRASIL

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