No dia 9 de fevereiro do ano 249 d.C., em meio às ruas ensanguentadas de Alexandria, uma virgem cristã de idade avançada enfrentaria um dos martírios mais marcantes da história do cristianismo primitivo. Seu nome era Apolônia, e sua história se tornaria indissociável da odontologia e da proteção contra dores dentárias.
O Contexto Histórico: Uma Trégua Interrompida
Os seis anos do reinado de Filipe, o Árabe (243-249 d.C.), foram considerados um período de relativa trégua para os cristãos no Império Romano. O anticristianismo oficial havia cessado temporariamente, dando aos fiéis um respiro nas perseguições sistemáticas. Contudo, esse período de paz estava prestes a terminar de forma violenta.
No último ano do reinado de Filipe, a província africana do Egito demonstrou que a aversão aos cristãos permanecia latente na população. Alexandria, uma das maiores cidades do império e centro de aprendizado, tornaria-se palco de uma das mais brutais perseguições locais já registradas.
O Estopim da Violência
Tudo começou quando um "charlatão alexandrino", descrito pelo bispo Dionísio como um "maligno adivinho e falso profeta", insuflou a população pagã da cidade. Este agitador, posando como poeta e vidente, aproveitou-se do clima de tensão que já se formava desde as festividades do milênio de Roma em 248 d.C., quando a fúria popular contra os cristãos havia começado a se intensificar.
O bispo Dionísio de Alexandria, testemunha ocular desses terríveis eventos, relatou em uma carta enviada ao bispo Fábio de Antioquia como a fúria se espalhou: "A cidade parecia que tinha sido tomada por uma multidão de demônios enfurecidos".
A Escalada da Perseguição
A violência começou com a captura de um idoso cristão chamado Metras. Quando se recusou a blasfemar contra Cristo, foi espancado brutalmente, teve os olhos furados e o rosto desfigurado, sendo depois arrastado pelas ruas e apedrejado até a morte.
Em seguida, atacaram uma mulher chamada Quinta (ou Cointa), levando-a ao templo pagão e ordenando que adorasse os ídolos. Diante de sua recusa horrorizada, amarraram-na pelos pés e a arrastaram por toda a cidade sobre pavimentos ásperos, despedaçando-a contra pedras enormes antes de matá-la da mesma forma que o primeiro mártir.
Animados por essas primeiras violências, a multidão se lançou contra as casas dos cristãos. As residências foram invadidas e saqueadas. Joias e objetos preciosos foram roubados, enquanto móveis e roupas eram levados para uma praça onde ergueram uma grande fogueira. Os cristãos, incluindo idosos e crianças, foram arrastados pelas ruas, espancados e ameaçados de morte caso não renegassem sua fé em voz alta.
O Martírio de Santa Apolônia
Entre as vítimas desses ataques estava Apolônia, descrita como uma virgem de idade avançada e admirável virtude, respeitada por toda a comunidade cristã. Sua vida reclusa dedicada à caridade cristã e seu apostolado entre os pobres da comunidade a colocaram na mira do ódio pagão.
Quando foi capturada pela multidão enfurecida, sofreu uma tortura específica e brutal. Por se recusar a repetir blasfêmias contra a Igreja, foi espancada violentamente no rosto. Com fúria, os agressores golpearam seus maxilares e arrancaram todos os seus dentes, um por um.
Mas o suplício não parou por aí. Arrastaram-na até a grande fogueira que ardia no centro da cidade, nos portões de Alexandria, e deram-lhe um ultimato terrível: blasfemar contra Cristo e renunciar publicamente sua fé, ou ser queimada viva.
Uma Decisão que Mudou a História
Diante dessa escolha impossível, Apolônia fez um gesto que a deixou para sempre na memória da Igreja. Por gestos, deu a entender que desejava um momento para refletir. Quando a deixaram sozinha, algo extraordinário aconteceu: impelida por uma inspiração especial, ela própria se lançou rapidamente na fogueira, sendo consumida pelas chamas.
O que aconteceu naquele momento surpreendeu até mesmo seus algozes. Em vez de ceder às ameaças ou esperar ser forçada ao fogo, escolheu voluntariamente a morte em nome de sua fé inabalável.
Uma Questão Teológica Complexa
O martírio de Santa Apolônia, que terminou aparentemente em suicídio, causou um grande questionamento dentro da Igreja primitiva. Era correto e lícito entregar-se voluntariamente à morte para não renegar a fé?
Esta dúvida encontrou eco na obra "A Cidade de Deus" de Santo Agostinho, que também não apresentou uma posição definitiva. Ele escreveu: "Dizem, algumas santas mulheres, no tempo das perseguições, para evitarem os perseguidores da sua pudicícia, atiraram-se a um rio de mortal corrente caudalosa e deste modo pereceram – e o seu martírio celebra-se com a mais solene veneração na Igreja Católica".
Agostinho reconheceu a complexidade da situação: "Sobre isto não me atrevo a emitir temerariamente um juízo. Ignoro se a autoridade divina, servindo-se de alguns testemunhos dignos de fé, persuadiu a Igreja a honrar deste modo a sua memória."
Para o grande doutor da Igreja, quando Deus dá um comando claro, a obediência não poderia ser considerada crime: "Efetivamente, quando Deus manda e mostra sem ambiguidade que é ele que manda — quem chamará delito a esta obediência?".
A Veneração Imediata
Apesar das discussões teológicas, o bispo Dionísio não demonstrou a menor reprovação ao ato de Santa Apolônia. Para ele, ela era tão mártir quanto os demais e, como tal, foi imediatamente venerada na Igreja de Alexandria.
O gesto heroico da mártir e sua vida dedicada à caridade cristã provocaram grande emoção e devoção em toda a província africana. Seu culto rapidamente se difundiu pelas dioceses do Oriente e do Ocidente.
Padroeira Universal dos Dentistas
Com o passar dos séculos, os devotos de Santa Apolônia a elegeram como protetora especial contra as doenças da boca e as dores de dente, devido ao suplício específico que sofreu. A Igreja Católica oficializou seu culto e a canonizou, celebrando sua festa no dia 9 de fevereiro, data exata de seu martírio conforme registrado na carta do bispo Dionísio.
Sua iconografia é inconfundível: ela é sempre representada segurando uma tenaz com um dente, simbolizando seu martírio. Uma ilustração francesa do século XIV, amplamente distribuída como pôster nos Estados Unidos, mostrava o dente sagrado brilhando na tenaz como uma luz divina.
Um Legado que Atravessa Culturas
Santa Apolônia transcendeu as fronteiras religiosas e culturais, tornando-se uma figura importante em diversas tradições:
- Na Alemanha, faz parte dos famosos "14 Santos Auxiliares", os patronos da vida cotidiana
- Na Sicília, é uma das padroeiras de Catânia
- Em algumas regiões da Itália, é conhecida como a "fada do dente", coletando os dentes de leite das crianças enquanto dormem
- A Ilha Maurícia foi originalmente batizada de Santa Apolônia pelos navegadores portugueses em 1507.
- Em várias cidades europeias surgiram igrejas dedicadas a ela, incluindo uma em Roma (hoje desaparecida) próxima a Santa Maria em Trastevere
O Testemunho Eterno
Sobre a vida de Santa Apolônia não restaram outros registros além de seu martírio, mas seu exemplo de generosa e incondicional oferta a Cristo permanece como testemunho poderoso. Hoje, relíquias atribuídas à santa podem ser encontradas em igrejas por toda a Europa - muitas vezes na forma de dentes ou fragmentos ósseos que, durante a Idade Média, eram procurados como cura para dores dentárias.
Sua história nos lembra que, mesmo nas circunstâncias mais extremas, a fé pode encontrar formas heroicas de se manifestar. E para milhões de pessoas ao longo dos séculos, invocar o nome de Santa Apolônia antes de uma consulta ao dentista tornou-se um gesto de esperança e proteção.
A história de Santa Apolônia permanece como um testemunho extraordinário de coragem diante da adversidade mais brutal, e sua intercessão continua sendo buscada por todos aqueles que enfrentam o desconforto e a ansiedade dos problemas dentários.