Entre os mais interessantes e curiosos textos da tradição teológica esta Da Demonialidade e dos Íncubos e Súcubos. No original: De la Démonialité et des Incubes et Succubes: Où l’on prouve qu’il existe sur terre des créatures raisonnables autres que l’homme, ayant comme lui un corps et une âme, naissant et mourant comme lui, rachetées par N.-S. Jésus-Christ et capables de salut ou de damnation. Par le R. P. Louis-Marie Sinistrari d’Ameno. A obra é atribuída ao padre franciscano Ludovico Maria Sinistrari d’Ameno, do século XVII, o livro, na verdade um tratado, aborda a existência de criaturas racionais não humanas — os chamados íncubos e súcubos — sob a perspectiva do direito canônico e da metafísica cristã. A parte mais interessante, a meu ver, reside no fato de o autor não tratar esses seres como meras ilusões ou fantasias populares. Não. Ele os trata como entidades. Como seres de corpo e alma que nascem e morrem e que também estão à salvação ou condenação.
A publicação moderna do texto se deve ao editor e erudito francês Isidore Liseux que, em 1872, encontrou o manuscrito em Londres e o traduziu do latim para o francês, lançando-o oficialmente em 1875. O sucesso garantiu uma segunda edição em 1876 — a mesma cuja introdução menciona as reações entusiasmadas, sobretudo entre membros do clero católico.
Não faltaram acusações de que a obra seria falsificação erudita. No entanto, o testemunho de religiosos da própria Ordem de São Francisco, à qual pertenceu Sinistrari, serviu para reforçar a legitimidade do texto. A introdução da segunda edição chega a citar uma carta de aprovação de um Superior Capuchinho, usada para dissuadir os céticos. Nesse clima, o editor ironiza os incrédulos com a célebre máxima atribuída a Santo Agostinho, credo quia absurdum, e recorda com Horácio que “não devemos nos espantar de nada” (nil admirari).

Para o imaginário cristão, a obra representa um ponto de confluência entre a teologia moral, a demonologia medieval e a tradição jurídica eclesiástica. Sinistrari não discute apenas a existência desses seres: ele se interroga sobre sua natureza espiritual, suas faculdades sensíveis e sua relação com a humanidade. Debate, por exemplo, se a união carnal entre humanos e íncubos ou súcubos constitui pecado, qual a categoria jurídica dessas criaturas e como situá-las na economia da salvação. Ao fazê-lo, revela um universo simbólico em que o sobrenatural não é metáfora, mas parte integrante da realidade.
O texto testemunha um tempo em que o mistério permeava o cotidiano e a razão teológica ousava especular sobre fronteiras invisíveis. Para a Biblioteca dos Mestres do Imaginário, trata-se de uma peça rara. Um relicário de pensamento, medo e fantasia, que atravessa os séculos e continua a provocar fascínio, estranhamento e reflexão.
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