O Outro Mundo

Nessa época, o Ocidente morria de asfixia: foi o que se denominou “doçura de viver”. À falta de inimigos visíveis, a burguesia comprazia-se em atemorizar-se com a própria sombra: ela trocava o seu inimigo por uma inquietação dirigida. Falava-se de espiritismo, de ectoplasmas; rua Le Goff, no número dois, defronte ao nosso prédio, as mesas giravam. Isso se passava no quarto andar: “na casa do mago”, dizia minha avó. Às vezes, ela nos chamava e chegávamos a tempo de ver pares de mãos sobre uma jardineira, mas alguém se aproximava da janela e puxava as cortinas. Louise pretendia que o tal mago recebia diariamente crianças da minha idade, conduzidas por suas mães. “E acrescentava, vejo muito bem: ele lhes faz a imposição das mãos”. Meu avô meneava a cabeça, mas, embora condenasse tais práticas, não ousava ridicularizá-las; minha mãe sentia medo e minha avó, por uma vez, parecia mais intrigada que cética. Finalmente, entraram em acordo: “É preciso, sobretudo, não se preocupar com isso, isso deixa a gente louco!” A moda era das histórias fantásticas; os jornais bem-pensantes forneciam duas ou três por semana a esse público descristianizado que sentia saudades das elegâncias da fé. O narrador relatava com toda objetividade um fato perturbador; dava uma oportunidade ao positivismo: por estranho que fosse, o evento havia de comportar uma explicação racional. Tal explicação o autor procurava, achava e no-la apresentava lealmente. Mas, logo em seguida, punha toda sua arte em nos levar a medir a insuficiência e a leviandade daquela. Nada mais: o conto terminava por uma interrogação. Mas era suficiente: o Outro Mundo estava ali, tanto mais temível quanto não era de modo algum nomeado.SARTRE, Jean-Paul. As Palavras. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964, p. 95.