“Enquanto a caça cria um elo com a morte, a pesca, ao contrário, parece curiosamente ligada à vida. Não que as pessoas não queiram comer peixe, mas a pesca simplesmente não mobiliza as energias. A Lei Sálica considera o roubo de peixes tão grave quanto o de animais caçados ou caçadores, mas evita qualquer especificação. Os guardas-florestais imperiais devem ter o mesmo cuidado tanto com os rios e viveiros como com os mercados e as coelheiras, porém desconhecemos os conflitos que podem resultar de um roubo ou de um desvio de curso de água. Quem fala em peixe acaba falando em monges. A regra de são Bento determina: "Quanto às carnes de quadrúpedes, todos devem abster-se de ingeri-la, exceto os enfermos muito debilitados". O jejum litúrgico da Quaresma e da sexta-feira provocou entre os leigos a imitação do comportamento habitual dos monges, ou seja, comer peixe nesses dias. Lentamente o consumo de peixe de mar desenvolveu-se no século X a ponto de se tornar mais importante que o peixe de água doce; entretanto, no simbolismo alimentar e social o peixe permaneceu marcado pelos que o haviam lançado como alimento de paz de homens sem armas — os monges — e sobretudo por suas origens aquáticas, fonte da vida ligada ao mundo feminino. No limite, a pesca é vista como uma anticaça, uma atividade afinal aviltante e pejorativa, da qual a nobreza não poderia se ocupar.”
História da vida privada, 1: do Império Romano ao ano mil. Org. Paul Verny, trad. Hildegard Feist, vários autores. São Paulo: Cia das Letras, 2009, p. 480/481.