Oração


"Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude. Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em êxtase. Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala. Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. Faça com que a solidão não me destrua. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços meu pecado de pensar".
Clarice Lispector

Fundo ou Forma

Será que tudo é tão simples quanto a razão faz crer? Ou será o contrário, a fantasia simplificando tudo, para caber em nosso mundinho do eu? Quem sabe? Eu, aliás, não sei. Não obstante, talvez soubesse.

Animais Mágicos

Gatos são comumente associados à magia. Ora temidos, ora adorados, tidos por alguns como um animal traiçoeiro, fato é que os gatos acompanham o homem em sua trajetória histórica e pré-histórica. Possuidores de uma grande sensibilidade, dão as regras em seus relacionamentos com seres humanos. Ah! Quando você vir uma gato de três cores  (preto, amarelo e branco), esteja certo de que não é um gato, mas, sim, uma gata. O fato tem uma explicação simples: o gene que determina essas três cores na pelagem é letal para gatos do sexo masculino, tornando os embriões inviáveis. 

A Quaresma e a Quaresmeira


Para muitos, tempo de jejum, penitência e abstinência, tempo de valorizar o arrependimento e de negar a si mesmo. A Quaresma tem início na Quarta-Feira de Cinzas e termina apenas no Domingo de Páscoa. Período de autodisciplina e austeridade. Talvez por isso as quaresmeiras floresçam com tanta exuberância. Não adianta negar a vida. Ela é bem maior que todos os nossos sacrifícios. Maior que nós, individualmente, que valorizamos tanto assim um eu que, comendo demais ou comendo de menos está fatalmente condenado a desaparecer, mais cedo ou mais tarde. A vida? A nossa, a de cada um de nós, é apenas um empréstimo. Sem mais nem menos, todos a devolveremos um dia. Simples assim.

Planos

Entre os planos da paisagem, os horizontes multiplicados. Das folhas desfocadas bem aqui até as figuras esboçadas nas nuvens, maracujás, a pedra, a casa. O sinal da presença dos homens no reboco apressado. E nada permanece. Nem mesmo a pedra.

Noite Dia Dia Noite

A hora do lobo, que precede a escuridão, bem quando a luminosidade solar, trêmula, se esforça para permanecer visível, colore-se deste esforço e produz esses traços caprichosos que deixam ver estranhas formas, insinuantes, dúbias, como tudo que não pertence nem ao bem nem ao mal, nem à luz, nem às trevas.

A Verdade


"O místico é literalmente aquele que se cala, que sabe alguma coisa que os outros não sabem. Nós acreditaríamos nele, de resto, mesmo que ele nada tivesse de orfismo ou de eleusianismo: nem toda verdade é boa de se dizer; não se responde a todas as perguntas. Ao menos, não se diz não importa o quê a não importa quem. Há verdades que é preciso manejar com precauções infinitas, através de toda espécie de eufemismos, de astúcias e perífrases. O espírito não se coloca sobre elas, senão que as descrevendo em grandes círculos, como um pássaro. Mas isso é ainda dizer pouco: há um tempo para cada verdade, uma lei de oportunidade que está no princípio da iniciação. Antes é muito cedo; depois é tarde demais. É a verdade que se insere nesta história? Ou a consciência que se desenvolve segundo a duração? Pouco importa nesse instante: o certo é que há toda uma deontologia do verdadeiro que repousa sobre o sentido irracional da ocasião, ou, como nós diríamos de boa vontade, da conjuntura. Não é tudo dizer a verdade, 'toda a verdade', não importa quando, como um bruto: a verdade quer ser graduada; administra-se-a como um elixir poderoso e que pode ser mortal, aumentando a dose a cada dia, para deixar ao espírito tempo de habituar-se."
JANKÉLÉVITCH, V, L'ironie. Paris: Alcan, 1936, p. 40-41, tradução minha.

Catedral da Sé

Vista da Praça da Sé a partir da entrada principal da Catedral.

Maria, Femininos, Imaginário

O feminino deusa, o feminino Maria, o feminino puro. A versão santificada da mulher que aparece castamente coberta pelo manto azul onde brilham estrelas, que ergue os braços e mãos, saúda o alto para onde dirige o olhar. Tampouco seus pés pisam o solo, pois ela paira sobre uma nuvem e se faz acompanhar por anjos crianças. A cabeça é coberta por um véu branco, e seu vestido é amarelo, brilhante, para lembrar a luz dourada do sol.

Santo Expedito

Santo Expedito. Ele, que brilha no escuro à luz de poucas velas hoje, ao me aparecer em meio a essa aura sutil no velário da Igreja do Rosário. Os crentes lá colocam suas velas e saem, vão ter consigo, ou com seus compromissos, seus afazeres. E as velas ficam por lá, em meio a outras velas, orando por eles, lançando por toda a parte suas intermitências douradas que a objetiva captura.

A Mulher de Ló

Quando passei pelo vaso de cimento e seus caprichosos relevos, meio perdido no Parque da Redenção, posicionei a câmera de sorte a capturar o perfil. E na mesma hora ocorreu-me que a imagem poderia muito bem corresponder ao castigo que foi infligido à mulher de Ló, transformada em estátua de sal por ter desafiado as ordem divinas, olhando para trás, curiosa por saber o que acontecera às cidades de Sodoma e Gomorra. 

Pelas ruas da cidade eu vi


Pelas ruas da cidade, desdobram-se esses flagrantes de uma espiritualidade que se oferece como produto, no pavimento das calçadas, no meio do caminho de quem tem pressa. E no entanto, nesse ir e vir, a pauta sugere uma interrupção, passos cortados, uma pergunta sem resposta. Pode-se parar e consultar o além que aparece logo ali, e que promete respostas a perguntas das quais tudo depende, ou independe. Quem sabe? Pelas ruas da cidade o mito e a verdade se confundem na ficção que é, afinal, a raiz de toda a realidade. Pelas ruas da cidade, gente perdida que se desencontra, buscadores da verdade que podem encontrá-la numa resposta mágica, mítica, simbólica, cuja realeza se assenta num trono de gesso assentado sobre veludo preto que se ostenta, como pode, no chão da rua. Pelas ruas da cidade, a verdade se oferece à oferta e à procura, despudoradamente, pelas ruas da cidade, assim, nua, crua.