Felizes desencontros

Não lamente o que faltou.
As ausências se fazem presentes também, consubstanciando-se nesses vazios que colecionamos ao longo da vida.
Porque, sem eles, — os desencontros —, não nos aquerenciamos à solidão.
Porque, sem eles, — os desencontros —, é que recaímos bem aqui, no reduzido estar em si, onde não se escutam as frases feitas, onde os espumantes não borbulham, onde o cardápio é o de sempre.
Porque aqui tanto faz se é Natal ou se é Páscoa, os sinos tocam do mesmo jeito.

É que os Mestres não festejam.
Eles apenas imaginam como devem ser as festas, dosando as alegrais, os tempos, os ventos. Imaginando o que todos querem sentir, providenciando esperanças, saúde, paz, tranquilidades.
Os Mestres apenas disponibilizam a refinada morfina dos perdões e dos esquecimentos, o brilho dos reflexos sempre fugidios e ilusórios.
Os Mestres estão sempre sós, exatamente como qualquer um de nós. A diferença é que eles sabem disso.
Mais nada.

Oração

Porque faz sentido.
Viver é tão denso às vezes. Domingos enfeitados de sol e chuva. A TV ligada pra ninguém. O dia se indo, e o escuro da sala sob os olhares que me observam das paredes.
Aves Marias, Santos Anjos e, por companhia, a solidão.
Amém

Luar como ingrediente


Considerai, então, que é mister que a claridade lunar incida sobre os demais ingredientes. Pois, se assim não for, permanecerão adormecidos os poderes que devem ser despertos. 

O sentimento do mistério entre os alienados


Muitos alienados pertencentes às categorias mais disparatadas acreditam viver em pleno mistério, em uma perpétua e universal fantasmagoria. As ilusões, as alucinações, mesclando-se à realidade, causam-lhes a impressão, ― por pouco que reste de alguma memória e de alguma capacidade de comparação ou de controle ―, de que pessoas, animais, objetos, acontecimentos, palavras são enigmas complexos, com os quais não se pode brincar levianamente, ciladas, mistificações, símbolos. Qualquer rosto é uma máscara, ocultando um personagem secreto, e os dados mais fúteis devem ser decifrados. Por pouco que haja alguma consciência do desarranjo de suas faculdades e da mudança que lhe sobrevém, a própria personalidade do doente se torna um mistério para ele, centro desse universo de mistérios. Ao lado dos delirantes que acabaram e que estabilizaram seu sistema, ― os loucos que sabem, que encontraram ―, há aqueles que estão no período de atividade, em via de construírem seu delírio: os loucos que buscam, que experimentam hipóteses. O sentimento mórbido do mistério é a fonte inesgotável de suas interpretações delirantes,  e é para se libertarem da inquietude do inexplicável que eles sistematizam, segundo duas possibilidades, essas interpretações em um conjunto mais ou menos coerente.
Nós temos todos, nós os normais, o sentimento do mistério, e, conforme nossa cultura, o tormento do desconhecido. Mas temos também, e primeiramente, o discernimento do real, a percepção ou a adivinhação, se não adequada, ao menos praticamente suficiente das coisas naturais e das coisas humanas. Nossa noção das leis físicas nos orienta entre os fenômenos, nos sugere expectativas que não são decepcionantes; nossa noção das leis psicológicas nos permite a sociabilidade; sabemos que os homens não são sempre enganadores, comediantes, que a simplicidade, a veracidade, o erro ingênuo existem. Nós não complicamos muito a vida. Restam os grandes problemas, os arcanos da ciência e da filosofia: mas, sobre nosso sentimento normal do desconhecido, construímos apenas metafísicas, sistemas teóricos, que nos deixam as mãos livres para a ciência positiva e para a vida positiva.

D’Allones, G. R. (1906). Le sentiment du mystère chez les aliénés, Journal de psychologie normale et pathologique, Paris: Alcan, p. 1-2.

Nota: O Journal de Psychologie foi uma muito respeitável publicação. Nesse volume, que data do início do século XX, encontrei por acaso, enquanto procurava por outras coisas, esse artigo que trata de um sentimento tão inquietante: o sentimento do mistério, só que abordado em como ele acontece, segundo o autor, entre os alienados. Achei tão instigante que não resisti: traduzi os dois primeiros parágrafos e trouxe para cá, diretamente para consumo dos meus Mestres do Imaginário. A propósito (e cá entre nós), aquela parte do "nós, os normais" é ótima...  Quase tão boa quanto aquela dos "loucos que sabem" e "dos loucos que encontram"...


São Bento


Da biblioteca dos Mestres do Imaginário

Breviário do adivinho e do feiticeiro, contendo O tratado da varinha mágica, O dragão vermelho, Os maravilhosos segredos do pequeno Alberto, O enquirídio do Papa Leão III e outros formulários mágicos para curar todos os males, comandar os demônios, conjurar seus malefícios, descobrir as fontes, os tesouros escondidos e mesmo os ladrões e os assassinos, seguidos de curiosidades infernais e ocultas, com numeroso desenhos fantásticos.
Paris.
Em todas as livrarias.


O Ocultismo

"Não há acaso. Todas as coincidências são significativas. A nossa época é simultaneamente, a do homem no espaço e a da psicologia das profundezas, a do "sputinik" e a dos horóscopos. Vivemos uma era de mutação, em que as barreiras são derrubadas e o domínio humano, febrilmente explorado, engrandecido. Os campos restritos da psicologia, da história, da religião — a que outrora só alguns tinham acesso — abrem-se agora ao grande público. O ocultismo é um desses campos. Na sua história, nos seus ritos, podemos encontrar algo que enriqueça nosso conhecimento dos aspectos extremos da personalidade humana. Além disso, diga-se também que o segredo que rodeava e ainda rodeia as operações ocultistas afirma-se, obviamente, um poderoso estimulante da curiosidade. Em todos os tempos, a todos os níveis, o que é secreto exerce uma verdadeira fascinação sobre o espírito humano."

TONDRIAU, Julien. O Ocultismo. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964, p. 5.

Imagem: Detalhe de "O Jardim das Delícias Terrenas", de Hieronymus Bosch, do painel esquerdo "Adão e Eva", canto inferior direito. Fonte: Wikimedia Commons

São Francisco de Assis

Sob a influência do Barroco, São Francisco de Assis segura uma caveira, para lembrar que a vida encontra seu oposto na morte, ressaltando assim a dualidade, as oposições e os contrastes que caracterizaram as obras produzidas nesse período. 
A foto é detalhe da imagem que está em Mariana, MG.

No país do ocultismo



ROURE, Lucien. No país do ocultismo ou além do catolicismo. Paris, Gabriel Beauchesne Éditeur, 1925.

Segundo E. Pialat, em descrição publicada na Revue neo-scolastique de philosophie n. 9, de 1926 (ilustrada ao lado), na obra  intitulada No país do ocultismo ou além do catolicismo (Au pays de l`occultisme ou par delà le Catholicisme), 1925, Lucien Roure escreve sobre o Ocultismo, diferenciando-o do Espiritismo com que era então frequentemente confundido, mas do qual diferia profundamente. O livro aborda a história, a partir de fontes e referências, a evolução das doutrinas, vida e caráter de diversos personagens cujas biografias são apresentadas, com o objetivo de mostrar o sentido tomado pelo Ocultismo e movimentos com ele relacionados. Expondo linhas doutrinárias peculiares a diversas correntes, explica brevemente o sentido dos movimentos estudados à luz da ciência, das Sagradas Escrituras e mesmo das religiões orientais, supostamente reclamadas como relacionadas ao Ocultismo. O autor dedica sua obra àqueles aos quais chama de exploradores, que seriam almas sedentas de uma sabedoria que pudesse preencher o vazio de uma existência talvez dolorosa, e que acreditariam poder encontrar no Ocultismo um remédio para seus males. Até mesmo Freud é citado no livro, em que pese preservado o lado científico de seus trabalhos, com vistas a distinguir tal conteúdo do que seria o panfreudismo.

Abaixo, tradução do prefácio e foto da obra, parte da biblioteca dos Mestres do Imaginário.

Prefácio

O país do ocultismo tenta, em nossos dias, numerosos espíritos.
Entre eles há amadores, curiosos, investigadores.
A região do mistério os atrai. Eles sonham com não sei que Atlântida ou Mênfis perdida no deserto, cujas ruínas esconderiam o berço de todas as civilizações, a fonte de todas as religiões.  Lá longe, em algum refúgio ignorado, se esconderiam os documentos onde estão consignados os primeiros pensamentos do homem sobre Deus. Lá longe, no fundo de um santuário misterioso, viveu, vive ainda talvez, a casta sacerdotal que se transmite, passo a passo, o segredo das religiões primitivas.
Deixando de lado os diletantes e os turistas, é aos exploradores que nos endereçamos.
Nossa intenção é de lhes colocar nas mãos um guia. Nós aí revelamos as principais pistas seguidas em nossos dias nessas regiões do mistério. Desejamos estudar como elas se formaram, por quais, em quais direções elas conduzem.
Parece-nos que, estabelecido isso, alguma luz pode se projetar sobre as descobertas que a viagem pode prometer.
Caminho percorrido, encontraremos alguns investigadores menos ambiciosos, mas diversamente movidos por desejos inquietos: a eles também desejamos aportar uma ajuda que consideramos salutar.

Lucien Roure

Paris, janeiro 1925.

Reflexão


Será mesmo preciso ir vivendo essa coisa absorvente que consiste no tecido da vida? Esse algo rotineiro que nos cobra tempo, que nos consome tão preciosa seiva.

A nuvem conforme a sede


“Com uma chuva destas, que pouco lhe falta para dilúvio, seria de esperar que as pessoas estivessem recolhidas, à espera de que o tempo estiasse. Não é assim, porém, por toda a parte há cegos de boca aberta para as alturas, matando a sede, armazenando água em todos os recantos do corpo, e outros cegos, mais previdentes, e sobretudo mais sensatos, sustentam nas mãos baldes, tachos e panelas, e levantam-nos ao céu generoso, é bem certo que Deus dá a nuvem conforme a sede.”

Saramago