Coisas de Biblioteca

 

Era uma vez... Aliás, faz de conta que era uma vez, quando eu ainda ouvia os fantasmas, que encontrei esse bonequinho de pano e louça em uma loja tipo 1,99. Deve ter custado 6,99. Faz tanto tempo que nem me lembro mais qual era a moeda. Achei tão delicado. Lendo um livro, fumando cachimbo, usando óculos. Acomodei ao lado dele um pequeno cesto cheio de cachorrinhos. Combinou. Passou a morar em uma das minhas estantes. Às vezes eu o derrubo. Ele cai e invariavelmente perde a cabeça que eu, depois de achar caída em algum lugar não muito longe do desastre, volto a colar. Penso que nem o Highlander superaria um trauma assim. Mas ele, o velhinho (chamo-o de velhinho) supera. Um dia achei uma velhinha confeccionada nos mesmos moldes. Pensei na hora e comprar e torná-la companheira dele. Mas tinha cara de chata. Na hora decidi que só ia incomodar. Afinal, ele gosta de ler e de fumar. Vai que ela, que sequer tricotava, inventa de chatear o velhinho na estante. Não. Melhor assim. Letras e fumaça já está de bom tamanho. Ninguém precisa de gente chata... 

O velhinho segue mudando às vezes de prateleira na estante grande. Já morou em outras. Inclusive na estante onde residem os livros místicos (cada coisa que vocês nem imaginam). Ultimamente se acertou nos jurídicos, o canto histórico. E por aí vai. 

Por que tudo isso? Por nada. Simplesmente porque ainda me recordo de quando eu fazia de conta que, sim, era uma vez. De verdade.

O LIVRO DO MESTRE

Aos Iniciados do 3° Grau 

(Prefácio à Edição de 1931) 

Veneráveis Mestres,

Vós haveis sido elevados ao supremo grau da hierarquia maçônica: vosso diploma dá fé disso. Mas sois Mestres verdadeiramente? Responder que certo ramo misterioso vos é conhecido não resolve a questão, porque cada um pode decorar uma fórmula ritualística e repeti-la sem haver compreendido todo o seu alcance.

Não há, de resto, nada de humilhante em confessar nossa importância em face do mistério. Admitido na Câmara do Meio há nove lustros, não posso me vangloriar de conhecer a Acácia. Como vós, na realidade, eu permaneci Companheiro. Minhas viagens não tiveram fim e eu trabalho sem cessar para conquistar o Mestrado que estou bem longe de possuir.

Como posso ter então a pretensão de redigir um Livro do Mestre?

Acredito dever dar satisfação aos IIr.’. que esperam com impaciência a publicação desde manual; é que, pelo fato de aspirar ao Mestrado, cheguei a fazer dele uma concepção muito precisa. É porque sei muito bem aquilo que é preciso ser para se dizer Mestre que me sinto muito inferior ao terceiro grau. Consciente de tudo aquilo que me separa do ideal, eu meço, por esse mesmo fato, a distância a percorrer para atingi-lo. Mantendo-me de pé na montanha, percebo o caminho que leva ao cume; as dificuldades da escalada aparecem-me e eu posso orientar os valentes desejosos de afrontá-las.

É a eles que se endereça o tomo III de A Franco-Maçonaria Tornada Inteligível aos seus Adeptos, obra cujo plano é traçado desde 1888, no seio do Grupo Maçônico de Estudos Iniciáticos. Imediatamente O Livro do Aaprendiz foi colocado em obra, mas só veio à luz em 1892, sob os auspícios da Resp.’. Loj.’. Trabalho e Verdadeiros Amigos Fiéis.

Esse primeiro manual inspirou-se nas ideias comuns longamente discutidas. Também não trouxe nenhuma assinatura individual. Foi o mesmo com o Livro do Companheiro, aparecido em 1911, redigido em medida muito mais ampla sob minha responsabilidade pessoal.

Quanto ao Livro do Mestre, que completa a série, ele não pode ser elaborado em Câmara do Meio. Compreende-se então que tomo por minha conta a visão que tentei traduzir neste tratado particularmente espinhoso.

Sem dúvida, para encontrar a Palavra Perdida, recorri às luzes de IIr.’. mais instruídos. Uns como e o Ir.’. Hubert, diretor da Cadeia de União, verbalmente estimularam minhas meditações, enquanto Ragon, Eliphas Levi, Albert Pike e, sobretudo, Goethe, me instruíram por seus escritos.

Mas não é o bastante, nessa matéria, assimilar o pensamento de outrem. Para retomar o fio rompido das esquecidas tradições, foi preciso reviver o passado por um esforço pessoal intenso e perseverante. Trata-se de reviver a si mesmo em tempos antigos para absorver daí o que eles nos deixaram em monumentos significativos. Ruínas, superstições, doutrinas filosóficas desacreditadas, religiões estrangeiras, tudo merece ser explorado com cuidado; mas nada saberia ser mais revelador do que os poemas e os mitos.

Os poetas, cuja imaginação é esclarecida, são, em Iniciação, mais instruídos que os frios racionalistas, A época caldeia do herói Gilgamés e a lenda de Ishtar descida aos infernos, composição de alto alcance iniciático, remontam há mais de cinco mil anos. A narrativa da morte de Osiris e tantas outras fábulas, traduzem em imagens os ensinamentos da mais profunda sabedoria. A própria Bíblia é preciosa para quem sabe compreendê-la. A sedução de Eva pela serpente faz alusão aos princípios fundamentais de toda iniciação, do mesmo modo que diversos outros contos mais recentes.

As gerações transmitem fantasmagorias frívolas em aparência que o pensador não deve desdenhar. São elas que animam esse vitral da janela do Ocidente, da qual o Iniciado, parte de manhã do Oriente, aproxima-se à noite, depois de haver, ao meio-dia, examinado todas as coisas à plena claridade do dia.

Desde a aurora, sua razão desperta havia visto junto à janela do Oriente, os primeiros raios chamados a penetrar seu espírito. Esta iluminação tão súbita devia deslumbrá-lo e fazê-lo presunçoso. Plena de ardor, a inteligência assim surpreendida acredita-se forte frente aos erros. Ela enxerga em toda parte preconceitos a combater e fantasmas a espantar. É a época dos julgamentos precipitados que não levam em conta nenhuma autoridade recebida e condenam sem reserva tudo o que não se enquadra à opinião intransigente muito bruscamente adquirida.

Essa exuberância juvenil se acalma pelo meio-dia da vida. É então que o dia implacável cai quase verticalmente pela janela do meio-dia. Os objetos projetam apenas um mínimo de sombra e se revelam em toda sua realidade. É a hora em que convém observá-los rigorosamente, examinando-os sob todas as suas facetas. O julgamento torna-se então circunspecto e permanece de bom grado em suspenso. Uma compreensão exata recusa-se a condenar, porque ela explica com indulgência, considerando todos os fatores em causa.

A plena luz conduz assim à Tolerância que caracteriza a Sabedoria dos Iniciados. É necessário tudo julgar com serenidade, para obter o direito de abrir a janela ocidental do Santuário do Pensamento. O Sol se pôs então: a agitação do dia se acalma e a paz da noite se estende gradualmente sobre a planície. Os detalhes se dissipam na sombra crescente que faz sobressair o clarão da estrela verpertina diante da qual empalidecem todas as outras. Este astro não é mais o arrogante Lúcifer, inspirador de orgulho e de revolta; é o foco de uma branda claridade que leva ao sonho evocador da idealidade. Doravante a noite pode adensar os véus: as trevas do exterior não mais prevalecerão sobre a luz interior. Depois, quando os vivos se calam, os mortos se dispõem a falar. É chagada a hora de evocar aqueles que detêm os segredos que levaram para o túmulo. São eles os Verdadeiros Mestres, dos quais podemos fazer reviver o pensamento, conformando-nos aos ritos prescritos.

Mas não emprestemos às cerimônias um valor sacramental. Hiran não ressuscita em nós porque exteriormente representamos seu papel. Em Iniciação só conta aquilo que se realiza interiormente.

Esforçai-vos, pois, Veneráveis Mestres simbólicos, em transformar o símbolo em realidade. Titulares de diplomas e portadores de insígnias metamorfoseei-vos em Pensadores participando do Pensamento imperecível.

Possa o Livro do Mestre guiar-vos na realização dessa grande obra.

OSWALD WIRTH

Maio de 1931.