Entre a Luz e o Abismo: A Goetia em Crowley e o Erotismo da Vontade

A ti, el No-Nacido, yo invoco…”

Assim começa o sussurro uma oração que é também feitiço. Uma invocação paradoxal que pede à carne o que é do espírito. A Goetia crowleyana mergulha fundo na tessitura do desejo, do poder e da sombra.

A palavra Goetia vem do grego goēteía, e significa feitiçaria, charme, lamúria mágica. No ocidente esotérico, tornou-se o nome de um sistema mágico centrado na evocação de espíritos — em especial, os 72 demônios descritos na Ars Goetia, o primeiro livro do grimório Lemegeton Clavicula Salomonis (As Chaves Menores de Salomão). Explico: enquanto a teurgia busca a união com o divino, a Goetia dialoga com os poderes ocultos do submundo psíquico e espiritual. Mas ela não é inferior. É apenas outro caminho.

A tradução e publicação da Goetia atribuída a Aleister Crowley nasce da herança iniciática da Golden Dawn, aquela famosa ordem ocultista da qual tanto ele quanto MacGregor Mathers foram membros proeminentes e até rivais. Mathers iniciou a tradução, mas foi Crowley, com sua pena libidinosa e sua mente vulcânica, quem finalizou. A versão crowleyana não é só uma transcrição: é uma transmutação. Ele injeta nela o espírito da Magick — a magia como ato da Vontade Verdadeira, e não apenas ritual mecânico. É invocação erótica, é teatro cósmico. Repare:

Tú creaste al Macho y a la Hembra. Tú produjiste la Semilla y el Fruto.”

É uma liturgia que celebra a fecundação do universo não só como metáfora, mas como ação concreta. A Goetia de Crowley não separa o espiritual do corpóreo. Para ele, a invocação é penetração; o ritual, um orgasmo da alma. O mago não pede — ele toma, como quem abre as coxas da realidade e semeia nela sua vontade. E os demônios da Goetia são como máscaras do chamado inconsciente coletivo. Podemos ainda os tomar como arquétipos, como forças que nos habitam. Crowley compreendeu isso antes de Jung popularizar o conceito.

Evocar um espírito não significa trazer uma entidade externa, mas reconhecer uma potência interna e aprender a lidar com ela. Cada um dos 72 nomes é também uma porta do nosso próprio labirinto. Crowley foi poeta, ator, alquimista. Ele entendia o ritual como arte performática. Cada gesto corresponde a uma intenção, cada símbolo, a um corpo, cada som, uma espada. Em sua Goetia, Crowley  não domestica os demônios. Ele os veste de seda. A magia deixa de ser medo para tornar-se, simplesmente, linguagem.

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