Amo
folhear o Dicionário Infernal!
Para
quem ainda não conhece, trata-se de uma obra de meados do século XIX, compilada
por Collin de Plancy. Trata de crenças, personagens folclóricos, figuras
demonológicas, superstições, práticas mágicas e curiosidades do imaginário
europeu. É um verdadeiro catálogo do extraordinário, do insólito, do que escapa
à razão — sempre acompanhado de ilustrações que parecem saídas de um teatro de
sombras.
Muitas
vezes é bom simplesmente correr o cursor pelas páginas digitais até que uma
imagem chame nossa atenção. Ou uma palavra. Ou o que for.
Hoje
foi ADELITES.
A
definição é bem simples: “Adelites, devins espagnols qui se vantaient de
prédire par le vol ou le chant des oiseaux ce qui devait arriver en bien ou en
mal.” Ou seja: “adivinhos espanhóis que se vangloriavam de predizer, pelo voo
ou pelo canto dos pássaros, o que aconteceria de bom ou de mal.”
E,
além desta imagem, nada mais. Nada além disso — e nada além de nossa
imaginação. Porque podemos, afinal, imaginar o que as notas sonoras do canto
dos pássaros, ou mesmo a direção de seus voos, poderiam revelar a esses adelites.
Que sinais eles veriam no céu? Que presságios? Que espécie de linguagem se
desdobraria do canto e das asas dos pássaros?
Ir
ter com o Dicionário Infernal seria como consultar um oráculo? Não creio que eu
queira dizer isso — ao menos não exatamente. Não se trata de buscar respostas
para perguntas específicas. Nada disso. Mas talvez de descobrir uma inspiração,
deixar-se sugestionar, abrir-se para uma palavra nova (ou recém-descoberta) que
nos faça primeiro pensar e depois sentir — ou ambos simultaneamente. Às vezes
uma simples entrada perdida no índice basta despertar nossa curiosidade.
A
grande ideia que atravessa tudo isso talvez seja mesmo essa antiga obsessão
humana: predizer o futuro. É recorrente, ontem e hoje. Agora, quanto à imagem…
bem, confesso que não a entendi totalmente.
À
primeira vista, não entendi. Olhando com mais atenção, porém, vejo que a
gravura mostra duas figuras, ambas iluminadas pela lua. À direita, a mulher de
pé, usando saia longa, avental e um lenço na cabeça. Ela ergue os braços num
gesto expressivo, como se explicasse algo, chamasse atenção ou respondesse ao
que vê. Sua postura é firme, cheia de presença, quase teatral. À esquerda,
sobre um pequeno banquinho, há um rapaz — talvez um jovem, talvez uma criança
um pouco mais velha. Ele se inclina para a frente com a boca aberta, uma das
mãos na cabeça e a outra levantada para o céu, como se estivesse reagindo a
algo que só ele percebe. É um gesto de espanto, de súbita revelação ou de
súbito presságio.
A
lua, grande e clara, sugere que tudo acontece à noite. E, curiosamente, não há
pássaros visíveis — ou, se existem, são tão mínimos que se confundem com a
textura da página. Isso faz com que a cena pareça menos uma ilustração literal e
mais uma alegoria: duas pessoas comuns, no campo, diante do céu noturno, talvez
discutindo um sinal, talvez imaginando um, talvez inventando significados para
aquilo que não se vê.
E
justamente porque a imagem não explica — apenas sugere — ela nos convoca a
completar o resto. A imaginar o que se passa entre esses dois personagens, que
tipo de “augúrio” está sendo visto, quem ensina e quem aprende, ou se ambos
apenas dividem o mesmo instante de maravilha.
Bem,
isso foi o que o Dicionário Infernal tinha para nós esta noite. E talvez seja
justamente essa a graça de visitá-lo: deixar que uma pequena entrada esquecida,
uma palavra rara ou uma imagem enigmática abra uma fresta no nosso próprio
imaginário. Nem respostas, nem certezas — apenas um convite silencioso a olhar
de novo, a escutar melhor, a inventar sentidos para o que nos toca.
O
Dicionário Infernal não nos diz quem eram exatamente os adelites, nem como liam
o voo das aves, nem o que aquelas duas figuras, sob a lua, viram ou pensaram.
Mas oferece algo mais precioso: a possibilidade de buscar e de sempre
encontrar, não importa exatamente o quê. Isso é o extraordinário. Ele nos
atravessa, sempre, sutil ou brutalmente. Mesmo quando quase nada ou quase nada se
vê.