Os Mestres do Imaginário

Aqui pensando há quanto tempo existem os Mestres do Imaginário. Comecei este blog no dia 11 de fevereiro de 2009. Até agora, foram 173.875 visitas e 795 postagens publicadas, dentre as quais a mais visitada é Abertura do Livro da Lei. Há muita coisa sobre Maçonaria e sobre todos aqueles que, a meu ver, foram e são mestres na arte de viver e de morrer, uma vez que uma e outra podem ser compreendidas por seus extremos paradoxais.

Creio que nunca alterei a apresentação. Mestres do Imaginário continua dando o recado de alguém que, até hoje, lê de tudo e se interessa também por quase tudo. Nada aqui foi planejado. Por isso, surpreende-me muito receber visitas regulares, diariamente, do mundo todo. Nunca me interessei em produzir conteúdo sistematicamente. O único critério é o que me agrada, por vezes o que me desagrada, eventualmente o que me representa de algum modo.

Há dias em que percorro as postagens casualmente. E até gosto bastante de algumas. Gosto muito do fato de que, passados mais de 16 anos, eu ainda mantenha um ritmo não muito diferente do início. E, embora eu tenha mudado muito nesses anos todos, ainda me reconheço nesta escrita.

Desconheço quem acessa este blog. Vejo o movimento, e isso é o bastante. Os comentários são regulados, mas respondo a todos, sempre. Não sei quem vem até aqui, mas é bom saber que há leitores.

Escrever para este blog é sempre um exercício que exige espontaneidade e entusiasmo, duas condições nem sempre presentes, mas essenciais aos temas que costumo abordar somente aqui. Tampouco sei se o que escrevo encontra eco em quem lê. Suspeito que sim. Talvez seja só isso: um ponto de contato, um lampejo, uma pausa no fluxo do mundo.

Os Mestres do Imaginário seguem existindo sem promessas, sem outra estratégia que não a inspiração do que me acontece. Àqueles que passaram e que ainda passarão por aqui, meu silencioso respeito. Continuo. Por hábito, por gosto, por necessidade. E talvez, sobretudo, porque ainda há muito a imaginar.

 

Adelites


Amo folhear o Dicionário Infernal!

Para quem ainda não conhece, trata-se de uma obra de meados do século XIX, compilada por Collin de Plancy. Trata de crenças, personagens folclóricos, figuras demonológicas, superstições, práticas mágicas e curiosidades do imaginário europeu. É um verdadeiro catálogo do extraordinário, do insólito, do que escapa à razão — sempre acompanhado de ilustrações que parecem saídas de um teatro de sombras.

Muitas vezes é bom simplesmente correr o cursor pelas páginas digitais até que uma imagem chame nossa atenção. Ou uma palavra. Ou o que for.

Hoje foi ADELITES.

A definição é bem simples: “Adelites, devins espagnols qui se vantaient de prédire par le vol ou le chant des oiseaux ce qui devait arriver en bien ou en mal.” Ou seja: “adivinhos espanhóis que se vangloriavam de predizer, pelo voo ou pelo canto dos pássaros, o que aconteceria de bom ou de mal.”

E, além desta imagem, nada mais. Nada além disso — e nada além de nossa imaginação. Porque podemos, afinal, imaginar o que as notas sonoras do canto dos pássaros, ou mesmo a direção de seus voos, poderiam revelar a esses adelites. Que sinais eles veriam no céu? Que presságios? Que espécie de linguagem se desdobraria do canto e das asas dos pássaros?

Ir ter com o Dicionário Infernal seria como consultar um oráculo? Não creio que eu queira dizer isso — ao menos não exatamente. Não se trata de buscar respostas para perguntas específicas. Nada disso. Mas talvez de descobrir uma inspiração, deixar-se sugestionar, abrir-se para uma palavra nova (ou recém-descoberta) que nos faça primeiro pensar e depois sentir — ou ambos simultaneamente. Às vezes uma simples entrada perdida no índice basta despertar nossa curiosidade.

A grande ideia que atravessa tudo isso talvez seja mesmo essa antiga obsessão humana: predizer o futuro. É recorrente, ontem e hoje. Agora, quanto à imagem… bem, confesso que não a entendi totalmente.

À primeira vista, não entendi. Olhando com mais atenção, porém, vejo que a gravura mostra duas figuras, ambas iluminadas pela lua. À direita, a mulher de pé, usando saia longa, avental e um lenço na cabeça. Ela ergue os braços num gesto expressivo, como se explicasse algo, chamasse atenção ou respondesse ao que vê. Sua postura é firme, cheia de presença, quase teatral. À esquerda, sobre um pequeno banquinho, há um rapaz — talvez um jovem, talvez uma criança um pouco mais velha. Ele se inclina para a frente com a boca aberta, uma das mãos na cabeça e a outra levantada para o céu, como se estivesse reagindo a algo que só ele percebe. É um gesto de espanto, de súbita revelação ou de súbito presságio.

A lua, grande e clara, sugere que tudo acontece à noite. E, curiosamente, não há pássaros visíveis — ou, se existem, são tão mínimos que se confundem com a textura da página. Isso faz com que a cena pareça menos uma ilustração literal e mais uma alegoria: duas pessoas comuns, no campo, diante do céu noturno, talvez discutindo um sinal, talvez imaginando um, talvez inventando significados para aquilo que não se vê.

E justamente porque a imagem não explica — apenas sugere — ela nos convoca a completar o resto. A imaginar o que se passa entre esses dois personagens, que tipo de “augúrio” está sendo visto, quem ensina e quem aprende, ou se ambos apenas dividem o mesmo instante de maravilha.

Bem, isso foi o que o Dicionário Infernal tinha para nós esta noite. E talvez seja justamente essa a graça de visitá-lo: deixar que uma pequena entrada esquecida, uma palavra rara ou uma imagem enigmática abra uma fresta no nosso próprio imaginário. Nem respostas, nem certezas — apenas um convite silencioso a olhar de novo, a escutar melhor, a inventar sentidos para o que nos toca.

O Dicionário Infernal não nos diz quem eram exatamente os adelites, nem como liam o voo das aves, nem o que aquelas duas figuras, sob a lua, viram ou pensaram. Mas oferece algo mais precioso: a possibilidade de buscar e de sempre encontrar, não importa exatamente o quê. Isso é o extraordinário. Ele nos atravessa, sempre, sutil ou brutalmente. Mesmo quando quase nada ou quase nada se vê.

O que foi será

Há janelas que não se abrem para o mundo. Abrem-se para o tempo.Fechadas para o agora, por elas se vê o que foi antes. Sua moldura de madeira lembra um relicário, enquanto a vidraça, sempre embaçada, mergulha na névoa onde dançam as sombras em busca de seus corpos. A luz é ilusão do sol que brilhou ontem. Aquele que contempla esse espelho escuta as vozes dos que se calaram. Depois de algum tempo, a janela torna-se parte de sua visão. O presente o abandona. O vidro torna-se véu. O véu, passagem. A janela é um olhar que conhece o passado e, por aí, abre-se ao futuro. Porque o que foi sempre será, pelo simples fato de ter sido.

Templos


 Igreja das Dores. Se dores forem, delas diria que são paradoxais. É um lugar de beleza dramática. Não longe do Centro de Porto Alegre, está sempre de portas abertas. Entra-se. Olha-se. Respira-se o clima típico dos templos. Colhe-se por lá um tanto de suas, neste caso, obscuras belezas, porquanto a luz que ora se vem toda lá de fora.

Da Demonialidade e dos Íncubos e Súcubos — Uma Obra Singular

 

Entre os mais interessantes e curiosos textos da tradição teológica esta Da Demonialidade e dos Íncubos e Súcubos. No original: De la Démonialité et des Incubes et Succubes: Où l’on prouve qu’il existe sur terre des créatures raisonnables autres que l’homme, ayant comme lui un corps et une âme, naissant et mourant comme lui, rachetées par N.-S. Jésus-Christ et capables de salut ou de damnation. Par le R. P. Louis-Marie Sinistrari d’Ameno.  A obra é atribuída ao padre franciscano Ludovico Maria Sinistrari d’Ameno, do século XVII, o livro, na verdade um tratado, aborda a existência de criaturas racionais não humanas — os chamados íncubos e súcubos — sob a perspectiva do direito canônico e da metafísica cristã. A parte mais interessante, a meu ver, reside no fato de o autor não tratar esses seres como meras ilusões ou fantasias populares. Não. Ele os trata como entidades. Como seres de corpo e alma que nascem e morrem e que também estão à salvação ou condenação.

A publicação moderna do texto se deve ao editor e erudito francês Isidore Liseux que, em 1872, encontrou o manuscrito em Londres e o traduziu do latim para o francês, lançando-o oficialmente em 1875. O sucesso garantiu uma segunda edição em 1876 — a mesma cuja introdução menciona as reações entusiasmadas, sobretudo entre membros do clero católico.

Não faltaram acusações de que a obra seria falsificação erudita. No entanto, o testemunho de religiosos da própria Ordem de São Francisco, à qual pertenceu Sinistrari, serviu para reforçar a legitimidade do texto. A introdução da segunda edição chega a citar uma carta de aprovação de um Superior Capuchinho, usada para dissuadir os céticos. Nesse clima, o editor ironiza os incrédulos com a célebre máxima atribuída a Santo Agostinho, credo quia absurdum, e recorda com Horácio que “não devemos nos espantar de nada” (nil admirari).


Para o imaginário cristão, a obra representa um ponto de confluência entre a teologia moral, a demonologia medieval e a tradição jurídica eclesiástica. Sinistrari não discute apenas a existência desses seres: ele se interroga sobre sua natureza espiritual, suas faculdades sensíveis e sua relação com a humanidade. Debate, por exemplo, se a união carnal entre humanos e íncubos ou súcubos constitui pecado, qual a categoria jurídica dessas criaturas e como situá-las na economia da salvação. Ao fazê-lo, revela um universo simbólico em que o sobrenatural não é metáfora, mas parte integrante da realidade.

O texto testemunha um tempo em que o mistério permeava o cotidiano e a razão teológica ousava especular sobre fronteiras invisíveis. Para a Biblioteca dos Mestres do Imaginário, trata-se de uma peça rara. Um relicário de pensamento, medo e fantasia, que atravessa os séculos e continua a provocar fascínio, estranhamento e reflexão.

 


Templos

 Faz tempo. Não sei se alguns anos contam como pouco ou como muito tempo. Exatamente quantos? A foto é de 2011. Então tem mais de dez anos. Tem quase 15. Acho que é bastante tempo, ou quase nada em termos de eternidade. Não deixa de ser um templo. Ou o reflexo dele. No caso, é a Catedral Metropolitana de Porto Alegre refletida no vidro da fachada da Assembleia Legislativa. Mexendo nos meus velhos arquivos. Revivendo dias e noites. Paisagens. Encontros. Etc. e tal. Na verdade, ia postar em outro blog, mas, como sou distraída e acabei errando de endereço, caí neste aqui. Pensando bem, por que não nos Mestres do Imaginário? Afinal neste blog tenho o marcador "Templos". Mais um, ainda que apenas como reflexo. 

Aniversário

 Hoje é 13 de outubro. Não fosse a vida, não fosse a violência, não fossem os desencontros, não fosse a tal pandemia, a enchente, os acasos, não fosse, enfim, tudo aquilo a que damos o nome de contingências, hoje estarias de aniversário. Certo que ias querer fazer um daqueles churrascos de que os amigos gostavam tanto. Assar a carne bem devagar, com Trigo Velho, ou, como gostavas de dizer, Steinhäger. Tinha de ter cerveja, naturalmente. Pudim de leite condensado. Coisas simples, como música. Impossível não lembrar. Abri hoje a minha agenda e lá estava: 13 de outubro. Categórico isso. E irremediável. Porque se trata da morte. Porque se trata do fim. Porque se trata daquilo com que todos ― acho que posso, sim, usar essa palavra tão totalizante. Sim, acho que todos os Mestres do Imaginário se ocuparam dela, a morte. Uns para dar-lhe sentido, outros para lhe negaram, outros para explicarem sua importância. Seja como for, no teu caso, foi uma estupidez. Morte sem qualquer sentido. Interrupção que não se explica nem se aceita. Talvez por isso seja tão difícil de aceitar. Outros morrem também. Verdade, morrem-se tranquilamente alguns. Outros com preparo. Muitos com certa pompa. Mas assim, brutalmente, não merecias. Foi uma estupidez, repito.


Koan

A palavra vem do chinês ― gōng-àn ― e designa um paradoxo que é deliberadamente construído para sabotar nossa peculiar maneira de entender o mundo. Um koan é algo que pode detonar nossas certezas ontológicas, e só uma pessoa profundamente superficial — como penso que sou, aliás — pode saber disso muito bem. Afinal, desaprender é um pouco como desapegar: um querer que desquer, que silencia os ruídos analíticos que permeiam nosso pensar. Não é algo que se deva aprender. Koans são para experimentar, tipo lembrar do que não se sabia enquanto se escutam palavras não ditas. 

Zanoni, de Edward Bulwer-Lytton

Se você está aqui, deve ter ouvido falar de "Zanoni" (1842), livro de Edward Bulwer-Lytton. É um romance, mas também um manual esotérico. O personagem principal, Zanoni, possui conhecimentos ocultos e sua longevidade é sobrenatural. Porém, apaixona-se por Viola Pisani, uma cantora pela qual ele renuncia à imortalidade. Tudo se passa à época da Revolução Francesa, de sorte que destinos pessoais confundem-se com a trama histórica. Em paralelo, temos Glyndon, jovem artista que encarna o buscador comum: apesar de desejar descobrir os segredos místicos, não compreende o preço a ser pago.

O autor, Edward Bulwer-Lytton (1803-1873), ícone da Era Vitoriana, foi um verdadeiro aristocrata que conhecia tradições herméticas, alquimia e filosofia oculta. Político, ocultista, escritor influente em seu tempo. Primeiro Barão Lytton, frequentou a Câmara dos Lordes e lutou por reformas sociais. Devem-se a ele algumas frases famosas como: "a pena é mais poderosa que a espada" e o infame clichê: “era uma noite escura e tempestuosa" — bem, ninguém é perfeito.

Na introdução, Bulwer-Lytton não se apresenta não como autor, mas como o tradutor de manuscritos misteriosos, compostos por caracteres desconhecidos, que teriam chegado às suas mãos. O romance toma, assim, ares de realidade. Erudito, ele abre o romance com uma epígrafe de Torquato Tasso, extraída da "Gerusalemme Liberata": "Era uma virgem de grande beleza, mas de sua beleza não fazia caso: A negligência mesma é arte nos que são favorecidos pela Natureza, pelo amor e pelos céus."

Uma citação não casual, que estabelece o tema da beleza natural posto ao artifício. Assim, haveria pessoas "favorecidas pelos céus", conceito que envolve os personagens principais e seus dons sobrenaturais. Marco na literatura esotérica moderna, Zanoni influenciou movimentos como a Teosofia e gerações de buscadores espirituais, abordando temas universais como amor e conhecimento, mortalidade e transcendência, bem como o preço a pagar pela sabedoria.