Há janelas que não se abrem para o mundo. Abrem-se para o tempo.Fechadas para o agora, por elas se vê o que foi antes. Sua moldura de madeira lembra um relicário, enquanto a vidraça, sempre embaçada, mergulha na névoa onde dançam as sombras em busca de seus corpos. A luz é ilusão do sol que brilhou ontem. Aquele que contempla esse espelho escuta as vozes dos que se calaram. Depois de algum tempo, a janela torna-se parte de sua visão. O presente o abandona. O vidro torna-se véu. O véu, passagem. A janela é um olhar que conhece o passado e, por aí, abre-se ao futuro. Porque o que foi sempre será, pelo simples fato de ter sido.
Leio de tudo. Dos clássicos e acadêmicos até almanaques populares e bulas de remédio. Excluindo revistas em quadrinhos, devoro qualquer tipo de literatura, mesmo aquela vista como dejeto cultural. Certamente já li e escrevi muita coisa, traduzi outras tantas, e meus arquivos estão cheios de traças que vieram das alturas do Himalaia. Este blog, então, vai ser o canal de saberes fragmentados, oficiais e oficiosos, que os Mestres do Imaginário oferecem a nossa indiscrição.
Templos
Da Demonialidade e dos Íncubos e Súcubos — Uma Obra Singular
Entre os mais interessantes e curiosos textos da tradição teológica esta Da Demonialidade e dos Íncubos e Súcubos. No original: De la Démonialité et des Incubes et Succubes: Où l’on prouve qu’il existe sur terre des créatures raisonnables autres que l’homme, ayant comme lui un corps et une âme, naissant et mourant comme lui, rachetées par N.-S. Jésus-Christ et capables de salut ou de damnation. Par le R. P. Louis-Marie Sinistrari d’Ameno. A obra é atribuída ao padre franciscano Ludovico Maria Sinistrari d’Ameno, do século XVII, o livro, na verdade um tratado, aborda a existência de criaturas racionais não humanas — os chamados íncubos e súcubos — sob a perspectiva do direito canônico e da metafísica cristã. A parte mais interessante, a meu ver, reside no fato de o autor não tratar esses seres como meras ilusões ou fantasias populares. Não. Ele os trata como entidades. Como seres de corpo e alma que nascem e morrem e que também estão à salvação ou condenação.
A publicação moderna do texto se deve ao editor e erudito francês Isidore Liseux que, em 1872, encontrou o manuscrito em Londres e o traduziu do latim para o francês, lançando-o oficialmente em 1875. O sucesso garantiu uma segunda edição em 1876 — a mesma cuja introdução menciona as reações entusiasmadas, sobretudo entre membros do clero católico.
Não faltaram acusações de que a obra seria falsificação erudita. No entanto, o testemunho de religiosos da própria Ordem de São Francisco, à qual pertenceu Sinistrari, serviu para reforçar a legitimidade do texto. A introdução da segunda edição chega a citar uma carta de aprovação de um Superior Capuchinho, usada para dissuadir os céticos. Nesse clima, o editor ironiza os incrédulos com a célebre máxima atribuída a Santo Agostinho, credo quia absurdum, e recorda com Horácio que “não devemos nos espantar de nada” (nil admirari).

Para o imaginário cristão, a obra representa um ponto de confluência entre a teologia moral, a demonologia medieval e a tradição jurídica eclesiástica. Sinistrari não discute apenas a existência desses seres: ele se interroga sobre sua natureza espiritual, suas faculdades sensíveis e sua relação com a humanidade. Debate, por exemplo, se a união carnal entre humanos e íncubos ou súcubos constitui pecado, qual a categoria jurídica dessas criaturas e como situá-las na economia da salvação. Ao fazê-lo, revela um universo simbólico em que o sobrenatural não é metáfora, mas parte integrante da realidade.
O texto testemunha um tempo em que o mistério permeava o cotidiano e a razão teológica ousava especular sobre fronteiras invisíveis. Para a Biblioteca dos Mestres do Imaginário, trata-se de uma peça rara. Um relicário de pensamento, medo e fantasia, que atravessa os séculos e continua a provocar fascínio, estranhamento e reflexão.
Templos
Aniversário
Hoje é 13 de outubro. Não fosse a vida, não fosse a violência, não fossem os desencontros, não fosse a tal pandemia, a enchente, os acasos, não fosse, enfim, tudo aquilo a que damos o nome de contingências, hoje estarias de aniversário. Certo que ias querer fazer um daqueles churrascos de que os amigos gostavam tanto. Assar a carne bem devagar, com Trigo Velho, ou, como gostavas de dizer, Steinhäger. Tinha de ter cerveja, naturalmente. Pudim de leite condensado. Coisas simples, como música. Impossível não lembrar. Abri hoje a minha agenda e lá estava: 13 de outubro. Categórico isso. E irremediável. Porque se trata da morte. Porque se trata do fim. Porque se trata daquilo com que todos ― acho que posso, sim, usar essa palavra tão totalizante. Sim, acho que todos os Mestres do Imaginário se ocuparam dela, a morte. Uns para dar-lhe sentido, outros para lhe negaram, outros para explicarem sua importância. Seja como for, no teu caso, foi uma estupidez. Morte sem qualquer sentido. Interrupção que não se explica nem se aceita. Talvez por isso seja tão difícil de aceitar. Outros morrem também. Verdade, morrem-se tranquilamente alguns. Outros com preparo. Muitos com certa pompa. Mas assim, brutalmente, não merecias. Foi uma estupidez, repito.


