O RENASCIMENTO DA MAGIA


Gustave Le Bon - Wikimedia

   Não se pode deixar de insistir sobre um ponto importante: as últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX foram marcantes em termos de rupturas. Sabe-se bem disso. Contudo, quando vasculhamos a cotidianidade desse outro tempo, especialmente a partir dos discursos de então, é possível descobrir as tensões e as disputas que tinham lugar mesmo entre os protagonistas do saber, ou seja, os próprios cientistas. Exemplo disso nos vem da parte de Gustave Le Bon, particularmente em interessante artigo que apareceu em 1910 na La Revue Scientifique, no qual abordou o que considerava como um verdadeiro renascimento da magia. O tema merece ser exposto aqui porque ilustra muito bem o posicionamento de Gustave Le Bon no sentido de que não se deveria jamais subestimar a importância que a sugestão pode assumir independentemente da condição social e intelectual do indivíduo teoricamente sugestionado.
Para Le Bon (1910, p. 492) a sede de conhecer seu destino e de obter ajuda de forças sobrenaturais seria uma característica inerente ao homem. E tais desejos estariam na origem das diversas formas de magia, arte, segundo ele, praticada por todos os povos em todas as etapas de sua história. Necromancia, astrologia, mesmo a adivinhação feita por oráculos consistiriam em práticas análogas àquelas empregadas pelos chamados médiuns. Em Roma, por exemplo, a magia era uma religião de Estado, com sacerdotes encarregados de interpretar e comentar fenômenos naturais, especialmente à véspera de grandes batalhas. Esse colégio dos augúrios, aliás, persistiu mesmo até o século IV de nossa era, quando Teodósio lhe pôs fim sob a influência crescente do Cristianismo. A confiança geral nesses vaticínios teve lugar porque eles emanariam de supostos seres, considerados superiores, análogos aos espíritos dos modernos espíritas, e só mesmo o triunfo da nova fé teria feito calar os oráculos, decretando o desaparecimento da magia pagã. Esta, todavia, renascera na Idade Média com o nome de feitiçaria. O papel e o poder dessa feitiçaria, ― observa Le Bon (id. ibid.) ― poderiam ser bem aquilatados graças aos milhares de feiticeiras que, mesmo queimadas, reapareceriam sempre, domadas mais pelo tempo do que pelos suplícios que lhes foram infligidos pela Igreja. Como regra, a feitiçaria não dispensava a assistência do diabo, e disso teriam dado prova inumeráveis testemunhos e afirmações obstinadas que, mesmo ao preço da própria vida, incontestavelmente teriam provado a existência dos demônios, frequentes nos Sabats. Houve quem jurasse ter voado pelos ares, cavalgando vassouras, assim como houve quem tivesse relações sexuais com demônios. Tais confissões, por sua vez, dariam prova manifesta não das ações que descrevem, ― salienta Le Bon (id. ibid.) ― mas das ilusões criadas pelas sugestões individuais ou coletivas.
Nessa linha de argumentos, Le Bon (1910a, p. 492) explica que a modernidade, com seus métodos científicos, deveria ter colocado fim à crença na magia, despojando de prestígio os feiticeiros, desacreditados e relegados ao fundo de pequenas cidades. Contudo, a esperança de sobreviver ao túmulo seria, nos homens, um sentimento vivo demais para morrer, e a antiga magia deveria, uma vez mais, renascer, mudando de nome sem se modificar muito, reaparecendo nas práticas ocultistas e no espiritismo, este com seus médiuns inspirados no vaticínio dos espíritos. A evocação dos mortos também trouxera consigo as materializações. Por um bom tempo, a nova crença teria permanecido desacreditada e desdenhada pelos chamados sábios, todavia, a partir da última década no século XIX, eminentes personalidades tornaram-se defensoras convictas disso que, para Le Bon (1910a, passim), assume contornos de uma nova forma de magia. Ele nos dá exemplos concretos. Célebres antropólogos como Lombroso, químicos ilustres como Crookes, fisiologistas como Richet, físicos como d’Arsonval, filósofos como Boutroux teriam falado todos de suas experiências sobrenaturais. Todavia, a par desses, outros sábios tão ilustres quanto rejeitaram tais observações, consideradas como fruto de sugestões ou alucinações e indicativas de um retorno àquilo que seriam as mais baixas formas de feitiçaria e de superstição. Diante de tais contradições, a perplexidade nos levaria a indagar se seria verdadeiramente possível que observadores hábeis pudessem se enganar tanto. Além disso, restaria ainda saber por que tais fatos pretensamente certos não foram constatados por outros observadores operando em idênticas condições. Le Bon (id. ibid.), como resposta, afirma que durante muito tempo resistiu em estudar os fenômenos espíritas, julgando inútil perder seu tempo com o que considera pesquisas imprecisas e asserções contraditórias. Contudo, quando os espíritas pretenderam encontrar nas pesquisas que o próprio Le Bon fizera, ― pesquisas estas sobre a desmaterialização e sobre a existência da energia intra-atômica ―, uma prova de apoio à sua doutrina, sua atenção fora atraída para esse campo. Diante de tantas contradições, a perplexidade levaria a indagar se é verdadeiramente possível que observadores hábeis possam se enganar tanto, e por que tais fatos ― pretensamente certos ― não foram constatados por outros observadores, operando em idênticas condições.
Uma das observações mais pertinentes que faz consiste em afirmar que é um erro generalizado imaginar que um sábio, por importante que seja em sua especialidade, esteja por isso mesmo apto à observação de fatos estranhos à sua especialidade, notadamente quando ilusões ou fraudes desempenhassem aí um papel preponderante.  Ocorre que justamente os sábios seriam mais fáceis de enganar, porque estariam já habituados a crer no testemunho de seus sentidos complementados pelos instrumentos. Nesse sentido, deveríamos nos persuadir de que não serão os sábios que poderão constatar de maneira eficaz os chamados fenômenos espíritas. Observadores competentes para tanto seriam aqueles que estivessem habituados a criar ilusões, ou seja, os prestidigitadores, justamente aqueles que despertam profunda desconfiança em todos os que temem a perda de suas ilusões. O professor Binet, incluive, teria se oferecido para levar, gratuitamente, até o Instituto de Psicologia, hábeis prestidigitadores. Todavia, feita tal proposta, ele não teria mais sido convocado àquela instituição, fato que o levou a escrever a Gustave Le Bon (id. ibid.). D’Arsonval, a propósito disso, em uma entrevista, teria dito que via como útil a presença de prestidigitadores, os quais, por vez, não teriam respondido aos convites que lhes teriam sido endereçados. Le Bon (id. ibid.), contudo, questionou o sábio, opondo-lhe não só a declaração de Binet como ainda o trecho de uma carta escrita pelo Senhor Raynaly, vice-presidente da câmara sindical da prestidigitação, que diz: 

Permita-me explicar-vos que o Senhor D’Arsonval comete um erro quando diz que os prestidigitadores não se preocuparam em assistir as sessões de espiritismo quando tínhamos por isso o mais ardente desejo. Foram os espíritas que não desejaram nossa presença. Isso parece bastante significativo (Le Bon, 1910a p. 433).

Com efeito — escreve Le Bon (1910a, p. 433) — muito significativo e inteiramente lamentável que o Instituto de Psicologia tenha dado prova de tão manifesta má vontade à vista dos prestidigitadores, indagando das razões que haveria para a persistente recusa da presença de observadores capazes de descobrir fraudes. Nesse sentido, os ingleses teriam se mostrado mais judiciosos, quando o Senhor Masqueline, um prestidigitador, teria descoberto a fraude de um médium nas memoráveis sessões da Society of Phisical Researches. Depois de analisar mais detidamente aspectos relacionados ao espiritismo e ao ocultismo, tais como o magnetismo animal, telepatia, mesas dançantes, médiuns e personalidades inconscientes, levitação e deslocamento de objetos sem contato, Le Bon (id. ibid.) chega a algumas interessantes conclusões: a imensa maioria dos fatos expostos à luz do ocultismo ou do espiritismo seria produto de ilusões. Só um pequeno número deles daria lugar a dúvidas, no caso, o deslocamento de objetos que, todavia, jamais teria sido rigorosamente demonstrado. A propagação das crenças religiosas e a facilidade com que homens eminentes em todos os tempos admitiram superstições como realidades mais tarde julgadas como muito infantis se evidenciaria, contudo. Se aproximássemos crenças outrora universais à vista daquelas que hoje impressionam ilustres sábios, tais como a materialização de fantasmas, a evocação de mortos e outras, poder-se-ia bem formular uma importante lei: 

Quando, por contágio mental, ou por um motivo qualquer, uma crença penetra um pouco em certas regiões do entendimento, ela aí germina muito depressa e acaba por invadi-lo inteiramente fixando-se aí tão solidamente que raciocínio algum, experiência alguma consegue abalar. Ela fica então fora do alcance da lógica. Apenas o tempo poderá lentamente desgastá-la (Le Bon, 1910a, p. 434).

Em termos de credulidade, o sábio em nada é superior ao ignorante, constatação que se evidenciaria no estudo dos fenômenos espíritas. A credulidade ilimitada seria uma doença mental, e Le Bon (1910a, p. 434) nos assegura que ela pode nos atingir a todos tão logo saiamos do campo da observação científica para abordarmos o do maravilhoso. Isso explicaria o fato de vermos tantos e tão ilustres sábios professando crenças pueris idênticas àquelas daqueles que ele designa como selvagens iletrados. E exemplifica. Referindo-se a uma revista dirigida por um célebre professor de medicina de Paris, Le Bon (id. ibid.) descreve que os leitores ali puderam encontrar coisas tais como (1) a história de um médium que movia pêndulos a distância, (2) desenhos de espíritos desencarnados, (3) uma dissertação sobre fadas que habitam florestas,  (4) a história de quatro fantasmas que entoavam a Marselhesa em voz alta à luz da lua, etc. Não obstante as conclusões que tem por incontestáveis acerca de seu estudo, Le Bon (id. ibid.) alerta para um fato importante, qual seja, o de que as crenças corresponderiam a necessidades indestrutíveis que seriam, por isso mesmo, importantes, necessárias mesmo. A ciência proíbe justamente a abordagem do desconhecido, quando seria justamente aí que a alma humana depositaria os seus ideais e as suas esperanças. As crenças teriam consolado gerações de homens, iluminando suas vidas; já a ciência, um pouco intolerante outrora, seria levada a respeitar cada vez mais as coisas estranhas ao seu domínio, que correspondem a necessidades que ela não pode satisfazer. Ciência e crença — afirma — razão e sentimento pertenceriam a domínios independentes não interpenetráveis que não falariam a mesma linguagem. O homem, embora possa afrontar muitos perigos e tolerar muitos males, não poderia viver sem esperança.

Fonte: Le Bon, G. (1910). La renaissance de la magie. Revue Scientifique, a. 48. Paris: Bureau de la Revue Scientifique et Littéraire et de la Revue Scientifique, pp. 391-397; 426-435.

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