A maioria dos meus livros tem uma história e um significado afetivo maior ou menor. Fato é que uns são mais especiais que outros, pois livros e pessoas têm todos uma personalidade própria com a qual a gente simpatiza, antipatiza, fica indiferente ou até se apaixona. Lembro-me perfeitamente bem do dia em que, garimpando num sebo da Riachuelo, me deparei com este livro. Como era francês, o preço era convidativo e o assunto nunca deixou de despertar em mim algum interesse, comprei-o e deixei-o num canto. Isso foi há mais de dez anos, seguramente. O livro ficou na prateleira reservada aos ácaros do alto do Himalaia, junto com a turma da literatura mística e esotérica, astrologia, alquimia, numerologia, sociedades secretas, rituais, curiosidades sobre extraterrestres, almanaques, enfim, um espaço que fica bem atrás da porta do escritório, a 407, como gosto de chamar essa salinha entulhada de livros, cujo cheiro da poeira misturada à umidade costuma desagradar a muita gente.
Minha história com este livro, assim, não foi de amor à primeira vista. Dei uma olhada rápida e guardei. Olhei a foto. Achei a figura simpática, e foi só. Passou-se um bom tempo e, nos idos de 2000, quando me encontrava às voltas com uma tradução comercial de César Lombroso, senti necessidade de intercalar aquela tradução técnica de trechos extremamente áridos com outra que fosse bem diferente. Descansar de um trabalho com outro, alternando duas obras bem diferentes, distrai bastante e ainda por cima ajuda a manter o ritmo. Pois bem. Peguei Os Mistérios da Arte Real, enfiei-o na bolsa e trouxe-o comigo para casa num final de semana durante o qual decidi me dar uma folga de Lombroso e seus criminosos.
Lembro-me de que abri numa página qualquer e comecei a traduzir, sem outro objetivo que não fosse mandar alguns trechos do trabalho à tribo dos maçons meus amigos, uma vez que se tratava de uma obra pouco conhecida. Não sei quanto tempo trabalhei. Era domingo e eu estava sozinha em casa. Só me recordo de que, num dado momento, ao bater os olhos na barra inferior do Word, e ao me dar conta do enorme número de páginas traduzidas, levei um susto. Era muito mais do eu jamais tinha feito antes. Anoitecera, e eu não percebi. E não estava cansada, nem abatida, nem com os olhos ardendo. Ao contrário, estava leve e estranhamente eufórica, quase contente com a descoberta de uma estética notável. Definitivamente, não se tratava de um aventureiro, mas de um escritor excelente, convicto do que dizia, mas sem a pretensão de impor quaisquer verdades e, menos ainda, a de apresentar-se como mestre ou guru, iniciador ou coisa que o valha.
Foi nessa tarde que decidi adotá-lo. No dia seguinte levei o livro comigo para o escritório, assim como o material traduzido. Mal cheguei, e um querido amigo maçom, JC Miranda, apareceu de surpresa e foi entrando, eufórico, me dizendo: − Baixinha! Tem café? Trouxe um presente para ti! − Bem, a coincidência foi grande. O presente era mais um livro de Oswald Wirth que ele achara num sebo e copiara integralmente para me dar. Bem, já eram dois. Quem ama os livros sabe que essas coisas acontecem. Uma biblioteca tem algum tipo de alma, sim. Vive e se compõe a si própria de maneira que os livros vêm chegando pelos mais estranhos caminhos.
E foi assim que meu o caso com este escritor começou. Hoje ele é um dos meus mais queridos mortos, e tenho por ele um carinho extremo. Em que pese meu agnosticismo e minha completa indiferença em relação às coisas do além, gosto imensamente de ler o que ele escreve e confesso que adoraria conhecê-lo pessoalmente de verdade, não obstante a intimidade que tenho com sua obra e, muitas vezes, com seu pensamento. Sendo assim, eu não poderia abrir as postagens dos Mestres do Imaginário sem contar um pouquinho de Oswald Wirth, escritor ao qual eu devoto profundo respeito, admiração e afeto.