Uma Passagem de Ribot


Para retraçar essa marcha do espírito em direção à unidade absoluta da consciência, da qual a própria atenção mais concentrada é apenas um pálido esboço, nós não temos necessidade de recorrer a hipóteses prováveis, nem de proceder teoricamente e a priori. Eu encontro, no Castillo interior de Santa Teresa, a descrição etapa por etapa desta concentração progressiva da consciência que, partindo do estado ordinário de difusão, reveste a forma da atenção, ultrapassa-se e, pouco a pouco, em alguns casos raros, alcança a perfeita unidade da intuição. Na verdade, este documento é único, mas uma boa observação vale mais que cem medíocres. Ela pode, aliás, inspirar-nos plena confiança. É uma confissão feita por ordem do poder espiritual, é obra de um espírito muito delicado, muito hábil em observar, sabendo manejar sua língua para exprimir as mais finas nuanças.
Eu peço ao leitor que não se deixe derrotar pela fraseologia mística desta observação, de não esquecer que é uma espanhola do século XVI que se analisa em sua língua e com idéias de seu tempo; mas pode-se traduzi-la na linguagem da psicologia contemporânea. Eu vou tentar esta tradução, aplicando-me em mostrar esta concentração sempre crescente, esse estreitamento incessante do campo da consciência, descrito de acordo com uma experiência pessoal.
Há, diz ela, um castelo construído de um só diamante de uma beleza e de uma pureza incomparáveis; entrar aí, habitá-lo, é o objetivo do místico. Este castelo é interior, é em nossa alma; não temos de sair de nós para nele penetrar; mas o caminho é longo e difícil. Para atingi-lo há sete moradas a percorrer; ultrapassa-se os sete degraus da oração. No estado preparatório, está-se mergulhado na multiplicidade das impressões e das imagens, na vida do mundo. Traduzimos: a consciência segue seu curso ordinário, normal.
A primeira morada se atinge pela oração vocal. Eu interpreto: a prece em voz alta, a palavra articulada produz um primeiro grau de concentração, conduz a uma via única a consciência dispersa.
A segunda morada é aquela da oração mental, ou seja, a interioridade do pensamento aumenta; a linguagem interior substitui-se à linguagem exterior. O trabalho de concentração torna-se mais fácil; a consciência não tem mais necessidade do apoio material das palavras articuladas ou ouvidas para não se desviar; são-lhe suficientes imagens vagas de sinais se desenrolando em série.
A oração de recolhimento marca o terceiro degrau. Aqui, eu confesso, a interpretação me embaraça. Posso ver aí apenas uma forma superior do segundo momento, separada dele por uma nuança sutil e apreciável apenas pela consciência do místico.
Até aqui, houve atividade, movimento, esforço; todas as nossas faculdades estão ainda em jogo: agora é preciso não pensar mais, mas amar muito. Em outros termos, a consciência vai passar da forma discursiva à forma intuitiva, da pluralidade à unidade; ela tende a ser, não mais uma irradiação em torno de um ponto fixo, mas um único estado de uma intensidade enorme. E esta passagem não é o efeito de uma vontade caprichosa, arbitrária, nem do único movimento do pensamento entregue a si mesmo; é preciso entregar-se a um poderoso amor, o golpe de graça, ou seja, a conspiração inconsciente do ser por inteiro.
A oração da quietude introduz a quinta morada, e então a alma não produz mais, ela recebe; é um estado de alta contemplação que os míticos religiosos não são os únicos a conhecer. É a verdade aparecendo bruscamente em bloco, impondo-se como tal, sem os processos lentos e longos de uma demonstração lógica.
A quinta morada, ou oração da união é o começo do êxtase; mas ela é instável. É a entrevista com o divino noivo, mas sem possessão durável. As flores apenas entreabrem seus cálices, difundem apenas os primeiros perfumes. A fixação da consciência não está completa, ela tem oscilações e fugas; ela não pode ainda manter-se neste estado extraordinário e contra a natureza.
Enfim, ala atinge o êxtase na sexta morada pela oração de arrebatamento. O corpo de torna frio, a palavra e a respiração são suspensas, os olhos se fecham, o mais leve movimento causaria os maiores esforços. Os sentidos e as faculdades permanecem fora... Ainda que de ordinário não se perca o sentimento [a consciência] aconteceu-me de ficar inteiramente privada disso. Isso tem sido raro e dura muito pouco tempo. Muito freqüentemente o sentimento se conserva, mas experimenta-se eu não sei que perturbação e, ainda que não se possa atuar no exterior, não se deixa de escutá-lo. É como um som confuso que viria de longe.
Entretanto, mesmo essa maneira de ouvir cessa quando o arrebatamento está em seu mais alto grau.
Que é, pois, a sétima e última morada que se atinge pelo vôo do espírito? Que há além do êxtase? A unificação com Deus. Ela se faz de uma maneira súbita e violenta... com uma tal força que se tentaria em vão resistir a esse impulso impetuoso. Quando Deus desce à substância da alma que se torna uma com ele. Não é, na minha opinião, uma distinção inútil esta dos dois graus do êxtase. Em seu mais alto grau a própria abolição da consciência é atingida por seu excesso de unidade. Esta interpretação parece legítima, se a relacionarmos às duas passagens mais acima: aconteceu-me de ser inteiramente privada do sentimento. E essa maneira de ouvir cessa quando o arrebatamento está em seu mais alto grau. Poder-se ia tomar outros empréstimos à mesma autora. É notável que, num desses grandes arrebatamentos, a Divindade lhe apareça sem formas, como uma abstração perfeitamente vazia. Eis ao menos como ela se exprime: Eu direi, pois, que a Divindade é como um diamante de transparência soberanamente límpida e muito maior que o mundo. É-me impossível não ver aí senão que uma comparação literária e uma metáfora. É a expressão da perfeita unidade na intuição.

Ribot, Th. Psychologie de l'Attention. Alcan, Paris, 1913. pg. 142-148. Tradução: Maristela Bleggi Tomasini

Observação: Esta passagem de Ribot é muito interessante, na medida em que aborda a experiência mística do ponto de vista da ciência. Ribot, vale dizer, é considerado o fundador da psicologia científica francesa. Ribot também era formado em Filosofia e foi o responsável pela introdução da psicologia experimental na França. Trabalhou em psicologia clínica em conjunto com psiquiatras, com o intuito de relacionar as doenças mentais a bases orgânicas. É dele um conhecido enunciado sobre a memória: as recordações mais recentes, mais complexas e sem significado afetivo desaparecem mais depressa do que as recordações antigas, simples e carregadas de emoções.
Difícil a gente encontrar livros dele por aí. Mas eu encontrei sua Psychologie de L'Attention, Alcan, Paris, 1913. Pois bem, dando uma olhada na obra de menos de 200 páginas, me deparei com um trecho interessantíssimo, porque Ribot − indiscutivelmente um homem de ciência, − debruça-se sobre uma passagem de ninguém menos que Teresa de Ávila, a santa espanhola mística, uma mulher culta que deixou uma obra notável onde narra sua experiência mística.
Fiquei tão encantada com o que li que não resisti ao impulso de traduzir e compartilhar essa impressionante e delicada análise.