Não se pode deixar de insistir sobre
um ponto importante: as últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX
foram marcantes em termos de rupturas. Sabe-se bem disso. Contudo, quando
vasculhamos a cotidianidade desse outro tempo, especialmente a partir dos
discursos de então, é possível descobrir as tensões e as disputas que tinham
lugar mesmo entre os protagonistas do saber, ou seja, os próprios cientistas. Exemplo
disso nos vem da parte de Gustave Le Bon, particularmente em interessante
artigo que apareceu em 1910 na La Revue
Scientifique, no qual abordou o que considerava como um verdadeiro
renascimento da magia. O tema merece ser exposto aqui porque ilustra muito bem o posicionamento
de Gustave Le Bon no sentido de que não se deveria jamais subestimar a
importância que a sugestão pode assumir independentemente da condição social e
intelectual do indivíduo teoricamente sugestionado.
Para Le Bon (1910, p. 492) a sede de
conhecer seu destino e de obter ajuda de forças sobrenaturais seria uma
característica inerente ao homem. E tais desejos estariam na origem das
diversas formas de magia, arte, segundo ele, praticada por todos os povos em
todas as etapas de sua história. Necromancia, astrologia, mesmo a adivinhação
feita por oráculos consistiriam em práticas análogas àquelas empregadas pelos chamados
médiuns. Em Roma, por exemplo, a magia era uma religião de Estado, com
sacerdotes encarregados de interpretar e comentar fenômenos naturais,
especialmente à véspera de grandes batalhas. Esse colégio dos augúrios, aliás,
persistiu mesmo até o século IV de nossa era, quando Teodósio lhe pôs fim sob a
influência crescente do Cristianismo. A confiança geral nesses vaticínios teve
lugar porque eles emanariam de supostos seres, considerados superiores,
análogos aos espíritos dos modernos espíritas, e só mesmo o triunfo da nova fé
teria feito calar os oráculos, decretando o desaparecimento da magia pagã. Esta,
todavia, renascera na Idade Média com o nome de feitiçaria. O papel e o poder
dessa feitiçaria, ― observa Le Bon (id. ibid.) ― poderiam ser bem aquilatados
graças aos milhares de feiticeiras que, mesmo queimadas, reapareceriam sempre,
domadas mais pelo tempo do que pelos suplícios que lhes foram infligidos pela
Igreja. Como regra, a feitiçaria não dispensava a assistência do diabo, e disso
teriam dado prova inumeráveis testemunhos e afirmações obstinadas que, mesmo ao
preço da própria vida, incontestavelmente teriam provado a existência dos
demônios, frequentes nos Sabats. Houve quem jurasse ter voado pelos ares,
cavalgando vassouras, assim como houve quem tivesse relações sexuais com
demônios. Tais confissões, por sua vez, dariam prova manifesta não das ações
que descrevem, ― salienta Le Bon (id. ibid.) ― mas das ilusões criadas pelas
sugestões individuais ou coletivas.
Nessa linha de argumentos, Le Bon
(1910a, p. 492) explica que a modernidade, com seus métodos científicos,
deveria ter colocado fim à crença na magia, despojando de prestígio os
feiticeiros, desacreditados e relegados ao fundo de pequenas cidades. Contudo,
a esperança de sobreviver ao túmulo seria, nos homens, um sentimento vivo
demais para morrer, e a antiga magia deveria, uma vez mais, renascer, mudando
de nome sem se modificar muito, reaparecendo nas práticas ocultistas e no
espiritismo, este com seus médiuns inspirados no vaticínio dos espíritos. A
evocação dos mortos também trouxera consigo as materializações. Por um bom
tempo, a nova crença teria permanecido desacreditada e desdenhada pelos chamados
sábios, todavia, a partir da última década no século XIX, eminentes personalidades
tornaram-se defensoras convictas disso que, para Le Bon (1910a, passim), assume
contornos de uma nova forma de magia. Ele nos dá exemplos concretos. Célebres
antropólogos como Lombroso,
químicos ilustres como Crookes, fisiologistas como Richet, físicos como
d’Arsonval, filósofos como Boutroux teriam falado todos de suas experiências
sobrenaturais. Todavia, a par desses, outros sábios tão ilustres quanto rejeitaram
tais observações, consideradas como fruto de sugestões ou alucinações e indicativas
de um retorno àquilo que seriam as mais baixas formas de feitiçaria e de superstição.
Diante de tais contradições, a perplexidade nos levaria a indagar se seria
verdadeiramente possível que observadores hábeis pudessem se enganar tanto.
Além disso, restaria ainda saber por que tais fatos pretensamente certos não
foram constatados por outros observadores operando em idênticas condições. Le Bon
(id. ibid.), como resposta, afirma que durante muito tempo resistiu em estudar
os fenômenos espíritas, julgando inútil perder seu tempo com o que considera pesquisas
imprecisas e asserções contraditórias. Contudo, quando os espíritas pretenderam
encontrar nas pesquisas que o próprio Le Bon fizera, ― pesquisas estas sobre a desmaterialização
e sobre a existência da energia intra-atômica ―, uma prova de apoio à sua
doutrina, sua atenção fora atraída para esse campo. Diante de tantas contradições,
a perplexidade levaria a indagar se é verdadeiramente possível que observadores
hábeis possam se enganar tanto, e por que tais fatos ― pretensamente certos ― não
foram constatados por outros observadores, operando em idênticas condições.
Uma das observações mais pertinentes
que faz consiste em afirmar que é um erro generalizado imaginar que um sábio,
por importante que seja em sua especialidade, esteja por isso mesmo apto à
observação de fatos estranhos à sua especialidade, notadamente quando ilusões
ou fraudes desempenhassem aí um papel preponderante. Ocorre que
justamente os sábios seriam mais fáceis de enganar, porque estariam já
habituados a crer no testemunho de seus sentidos complementados pelos instrumentos.
Nesse sentido, deveríamos nos persuadir de que não serão os sábios que poderão
constatar de maneira eficaz os chamados fenômenos espíritas. Observadores
competentes para tanto seriam aqueles que estivessem habituados a criar
ilusões, ou seja, os prestidigitadores, justamente aqueles que despertam
profunda desconfiança em todos os que temem a perda de suas ilusões. O
professor Binet, incluive, teria se oferecido para levar, gratuitamente, até o
Instituto de Psicologia, hábeis prestidigitadores. Todavia, feita tal proposta,
ele não teria mais sido convocado àquela instituição, fato que o levou a
escrever a Gustave Le Bon (id. ibid.). D’Arsonval, a propósito disso, em uma
entrevista, teria dito que via como útil a presença de prestidigitadores, os
quais, por vez, não teriam respondido aos convites que lhes teriam sido
endereçados. Le Bon (id. ibid.), contudo, questionou o sábio, opondo-lhe não só
a declaração de Binet como ainda o trecho de uma carta escrita pelo Senhor
Raynaly, vice-presidente da câmara sindical da prestidigitação, que diz:
Permita-me explicar-vos que o Senhor D’Arsonval comete um erro quando
diz que os prestidigitadores não se preocuparam em assistir as sessões de
espiritismo quando tínhamos por isso o mais ardente desejo. Foram os espíritas
que não desejaram nossa presença. Isso parece bastante significativo (Le Bon,
1910a p. 433).
Com efeito — escreve Le Bon (1910a, p. 433) — muito significativo
e inteiramente lamentável que o Instituto de Psicologia tenha dado prova de tão
manifesta má vontade à vista dos prestidigitadores, indagando das razões que
haveria para a persistente recusa da presença de observadores capazes de
descobrir fraudes. Nesse sentido, os ingleses teriam se mostrado mais
judiciosos, quando o Senhor Masqueline, um prestidigitador, teria descoberto a
fraude de um médium nas memoráveis sessões da Society of Phisical Researches. Depois de analisar mais detidamente
aspectos relacionados ao espiritismo e ao ocultismo, tais como o magnetismo
animal, telepatia, mesas dançantes, médiuns e personalidades inconscientes,
levitação e deslocamento de objetos sem contato, Le Bon (id. ibid.) chega a algumas
interessantes conclusões: a imensa maioria dos fatos expostos à luz do ocultismo
ou do espiritismo seria produto de ilusões. Só um pequeno número deles daria
lugar a dúvidas, no caso, o deslocamento de objetos que, todavia, jamais teria
sido rigorosamente demonstrado. A propagação das crenças religiosas e a
facilidade com que homens eminentes em todos os tempos admitiram superstições
como realidades mais tarde julgadas como muito infantis se evidenciaria,
contudo. Se aproximássemos crenças outrora universais à vista daquelas que hoje
impressionam ilustres sábios, tais como a materialização de fantasmas, a evocação
de mortos e outras, poder-se-ia bem formular uma importante lei:
Quando, por contágio mental, ou por um motivo qualquer, uma crença
penetra um pouco em certas regiões do entendimento, ela aí germina muito
depressa e acaba por invadi-lo inteiramente fixando-se aí tão solidamente que
raciocínio algum, experiência alguma consegue abalar. Ela fica então fora do
alcance da lógica. Apenas o tempo poderá lentamente desgastá-la (Le Bon, 1910a,
p. 434).
Em termos de credulidade, o sábio em
nada é superior ao ignorante, constatação que se evidenciaria no estudo dos
fenômenos espíritas. A credulidade ilimitada seria uma doença mental, e Le Bon (1910a, p. 434) nos assegura que ela
pode nos atingir a todos tão logo saiamos do campo da observação científica
para abordarmos o do maravilhoso. Isso explicaria o fato de vermos tantos e tão
ilustres sábios professando crenças pueris idênticas àquelas daqueles que ele designa
como selvagens iletrados. E exemplifica. Referindo-se a uma revista dirigida
por um célebre professor de medicina de Paris, Le Bon (id. ibid.) descreve que
os leitores ali puderam encontrar coisas tais como (1) a história de um médium
que movia pêndulos a distância, (2) desenhos de espíritos desencarnados, (3) uma
dissertação sobre fadas que habitam florestas, (4) a história de quatro fantasmas que
entoavam a Marselhesa em voz alta à luz da lua, etc. Não obstante as conclusões
que tem por incontestáveis acerca de seu estudo, Le Bon (id. ibid.) alerta para
um fato importante, qual seja, o de que as crenças corresponderiam a
necessidades indestrutíveis que seriam, por isso mesmo, importantes,
necessárias mesmo. A ciência proíbe justamente a abordagem do desconhecido,
quando seria justamente aí que a alma humana depositaria os seus ideais e as
suas esperanças. As crenças teriam consolado gerações de homens, iluminando
suas vidas; já a ciência, um pouco intolerante outrora, seria levada a
respeitar cada vez mais as coisas estranhas ao seu domínio, que correspondem a
necessidades que ela não pode satisfazer. Ciência e crença — afirma — razão e
sentimento pertenceriam a domínios independentes não interpenetráveis que não
falariam a mesma linguagem. O homem, embora possa afrontar muitos perigos e
tolerar muitos males, não poderia viver sem esperança.
Fonte: Le Bon, G. (1910). La renaissance de la
magie. Revue Scientifique, a. 48.
Paris: Bureau de la Revue Scientifique et Littéraire et de la Revue
Scientifique, pp. 391-397; 426-435.